Senhor: Ao encontrar sobre minha mesa de
trabalho o maior envelope que meus olhos já viram, não pude
controlar a emoção. Imaginei que conteria uma gravura preciosa,
dádiva imerecida, chegada sem qualquer aviso, para maior pasmo e
delícia do obsequiado. Presente régio, talvez, de Fayga Ostrower ou
de Marcelo Grassmann, mestres nacionais do gênero? Ou quem sabe não
seria presente, mas a derradeira das gravuras eróticas de Picasso,
mandadas exterminar no Brasil, e cujo proprietário houvera por bem
confiar à guarda deste amador das artes acima de qualquer suspeita?
Abri, não era nada disto. Era, como
direi? Redução do majestoso edifício que empreendestes construir
num dos últimos vãos disponíveis da orla marítima do Rio, e do
qual me oferecíeis lauta fração. O desenho a cores, abrangendo
calçadão, árvores, passeios, passantes; a planta igualmente
colorida, com requintes mil; a descrição anexa, abrangendo virtudes
tais como cristal solar-bronze, integração visual e decorativa,
cortina fria ambiental e outras mumunhas dignas de celebração,
deixaram-me naquele estado d’alma que pode ser rotulado de
propriedade feliz. Não só vi diante de mim a nobre máquina de
morar como ainda me vi dentro dela, os dois formando um todo, metade
cristal solar-bronze, metade carne contente, e para o mar olhávamos
orgulhosos, e o mar nos saudava com vagalhões de espuma admirativa,
e dele saltavam anfitrites douradas que descreviam no ar um gesto de
alegre confraternização, e o próprio Netuno, que de há muito
sumira de minha memória literária, se ergueu tridentinamente
magnífico e pronunciou no idioma lá dele estas palavras: “Salve,
cronista atlântico, em teu alcácer que entesta o meu salso domínio;
três vezes salve, de poder a poder!”.
Eu ia responder-lhe: “Que é isso, caro
Netuno, não mereço tanto”, e realmente não merecia, pois o
palacete marinho que me ofertastes era de papel; de primeira
qualidade, sim, mas papel; e posto fosse grande sua projeção na
folha, esta era ainda menor que o tamanho normal de um apartamento,
de sorte que realmente eu não cabia na morada que me destinastes,
mesmo que fosse viável morar em casa de chão de papel, paredes de
papel, teto de papel. Além do mais, oh que me desaba o sonho antes
de fruído, não me doastes coisa nenhuma, senão que me propusestes
vender-me uma unidade de vosso superedifício pelo preço
insignificante de Cr$ 900 mil, conforme verifiquei no verso do
espetacular desenho. Ora, novecentos mil, valorizados em três por
cento diante dessa mísera moedinha que é hoje o dólar furado, não
os tenho atualmente (ou nunca) na algibeira nem debaixo do colchão
nem no banco de que é contador meu amigo Antônio Carlos de
Oliveira, nem em parte alguma da Terra. É verdade que me acenais com
o pagamento em quarenta meses, mas posso profetizar, para meu vexame
e tristeza, que se topasse a oferta, ao fim do prazo estaria, não no
interior do palacete oceânico, mas debaixo do viaduto de São
Cristóvão, por falta de cumprimento da obrigação assumida.
Então, e portanto, vos pergunto: Por que
me mandastes, senhor, vosso cativante prospecto? Acaso me tínheis na
conta de gordo possuidor de reservas, disposto a aplicá-las para
tapar a última fenda na muralha de concreto de Copacabana?
Informou-vos um gaiato que eu fizera os treze pontos? E acreditastes?
Seria avaliar demasiado alto minha capacidade palpiteira, que não
chega a zero ponto. Admitir que brincastes comigo, em instante de
ócio mental, nem por sombra. Devo concluir que tivestes realmente a
intenção de doar-me a casa suspensa, e um de vossos assessores,
invejoso e ressentido, mandou gravar, nas costas do imenso cartão,
aquele preço desalentador?
Se for assim, rogo-vos entreis
imediatamente em comunicação direta comigo, para formalizardes a
munificência, a que me renderei de coração aberto e alma
reconhecida, pois não sou pobre soberbo nem tenho procuração da
paisagem, aliás extinta, do Rio de Janeiro, para implicar com a
indústria imobiliária, nem seria mais tempo de fazê-lo, se Inês é
morta.
… A menos que o envelopão me tenha
sido endereçado por engano, e neste caso a quem devo encaminhá-lo,
senhor?
Carlos Drummond de Andrade, in De notícias e não notícias faz-se a crônica
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