Trois contes em italiano
são conhecidos como Tre racconti e não poderíamos chamá-los
de outro modo, mas o termo conte (ao invés de récit
ou nouvelle) sublinha o apelo à narrativa oral, ao
maravilhoso e ao ingênuo, à fábula. Essa conotação vale para os
três contos: não só para “A lenda de são Juliano”, que é um
dos primeiros documentos da adesão moderna ao gosto “primitivo”
pela arte medieval e popular, e para “Herodíade”, reconstrução
histórica erudita, visionária e estetizante, mas também para “Um
coração simples”, em que a realidade cotidiana contemporânea é
vivida pela simplicidade de espírito de uma pobre empregada
doméstica.
Os Trois contes são um pouco a
essência de todo o Flaubert e, como dá para ler os três numa
noite, aconselho-os enfaticamente a todos aqueles que por ocasião do
centenário queiram tributar uma homenagem mesmo que rápida ao sábio
de Croisset. (Pela ocasião Einaudi volta a editá-los na finíssima
tradução de Lalla Romano.) Em tempo, quem tiver pressa pode deixar
de lado “Hérodias” (cuja presença no livro sempre me pareceu
dispersiva e redundante) e concentrar toda a atenção em “Un coeur
simple” e “Saint Julien”, partindo do elemento nuclear — o
visual.
Existe uma história da visualidade
romanesca — do romance como arte de fazer ver pessoas e
coisas — que coincide com alguns momentos da história do romance,
mas não com todos. De mme. de Lafayette a Constant o romance explora
o ânimo humano com uma acuidade prodigiosa, mas as páginas são
como persianas fechadas que não deixam ver nada. A visualidade
romanesca começa com Stendhal e Balzac, e com Flaubert atinge a
relação perfeita entre palavra e imagem (o máximo de economia com
rendimento máximo). A crise da visualidade romanesca começará meio
século depois, em simultâneo com o advento do cinema.
“Un coeur simple” é um conto feito
de coisas que se veem, de frases simples e leves em que ocorre sempre
alguma coisa: a lua sobre os prados da Normandia iluminando bois
deitados, duas mulheres e duas crianças que passam, um touro que sai
da névoa e ataca com o focinho baixo, Félicité que lhe joga terra
nos olhos para permitir aos outros saltar uma sebe; ou o porto de
Honfleur com os guindastes que levantam os cavalos para depositá-los
nos barcos, o sobrinho marinheiro que Félicité consegue ver por um
instante e que logo desaparece oculto por uma vela; e sobretudo o
pequeno quarto de Félicité, cheio de objetos, lembranças de sua
vida e da vida dos patrões, onde uma pia de água benta feita com
casca de coco está ao lado de um pedaço de sabão azul, tudo
dominado pelo famoso papagaio empalhado, espécie de emblema daquilo
que a vida não deu à pobre doméstica. É através dos mesmos olhos
de Félicité que vemos todas essas coisas; a transparência das
frases da narrativa é o único meio possível para representar a
pureza e a nobreza natural ao aceitar o bem e o mal da vida.
Na “Légende de saint Julien
l’Hospitalier”, o mundo visual é o de uma tapeçaria ou de uma
miniatura num código ou de um vitral de catedral, mas ele é vivido
de dentro como se também nós fôssemos figuras bordadas ou
reduzidas ou compostas de vidros coloridos. Uma profusão de animais
de várias formas, própria da arte gótica, domina o conto. Cervos,
gamos, falcões, galos-do-mato, cegonhas: o caçador Julien é
empurrado na direção do mundo animal por uma inclinação
sanguinária e o relato decorre na fronteira sutil entre crueldade e
piedade, até que não nos parece ter entrado no próprio coração
do universo zoomorfo. Numa página extraordinária, Julien se
encontra sufocado por penas, pelos, escamas, a floresta em torno dele
se transforma num bestiário amontoado e emaranhado de toda a fauna
inclusive exótica. (Não faltam os papagaios, como numa saudação à
distância para a velha Félicité.) Nessa altura, os animais não
são mais o objeto privilegiado de nossa visão, mas nós próprios
passamos a ser capturados pelo olhar dos animais, pelo firmamento de
olhos que nos fixam; sentimos que estamos passando para o outro lado:
parece-nos ver o mundo humano através de redondos e impassíveis
olhos de coruja.
O olho de Félicité, o olho da coruja, o
olho de Flaubert. Compreendemos que o verdadeiro tema desse homem,
aparentemente tão fechado em si mesmo, foi a identificação com o
outro. No abraço sensual de saint Julien no leproso podemos
reconhecer o árduo ponto de chegada para o qual tende a ascese de
Flaubert como programa de vida e de relação com o mundo. Talvez os
Trois contes sejam o testemunho de uma das mais
extraordinárias trajetórias espirituais nunca antes escrita fora do
âmbito das religiões.
Italo Calvino, in Por que ler os clássicos
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