sábado, 9 de janeiro de 2021

Gustave Flaubert, Trois contes

 


Trois contes em italiano são conhecidos como Tre racconti e não poderíamos chamá-los de outro modo, mas o termo conte (ao invés de récit ou nouvelle) sublinha o apelo à narrativa oral, ao maravilhoso e ao ingênuo, à fábula. Essa conotação vale para os três contos: não só para “A lenda de são Juliano”, que é um dos primeiros documentos da adesão moderna ao gosto “primitivo” pela arte medieval e popular, e para “Herodíade”, reconstrução histórica erudita, visionária e estetizante, mas também para “Um coração simples”, em que a realidade cotidiana contemporânea é vivida pela simplicidade de espírito de uma pobre empregada doméstica.
Os Trois contes são um pouco a essência de todo o Flaubert e, como dá para ler os três numa noite, aconselho-os enfaticamente a todos aqueles que por ocasião do centenário queiram tributar uma homenagem mesmo que rápida ao sábio de Croisset. (Pela ocasião Einaudi volta a editá-los na finíssima tradução de Lalla Romano.) Em tempo, quem tiver pressa pode deixar de lado “Hérodias” (cuja presença no livro sempre me pareceu dispersiva e redundante) e concentrar toda a atenção em “Un coeur simple” e “Saint Julien”, partindo do elemento nuclear — o visual.
Existe uma história da visualidade romanesca — do romance como arte de fazer ver pessoas e coisas — que coincide com alguns momentos da história do romance, mas não com todos. De mme. de Lafayette a Constant o romance explora o ânimo humano com uma acuidade prodigiosa, mas as páginas são como persianas fechadas que não deixam ver nada. A visualidade romanesca começa com Stendhal e Balzac, e com Flaubert atinge a relação perfeita entre palavra e imagem (o máximo de economia com rendimento máximo). A crise da visualidade romanesca começará meio século depois, em simultâneo com o advento do cinema.
Un coeur simple” é um conto feito de coisas que se veem, de frases simples e leves em que ocorre sempre alguma coisa: a lua sobre os prados da Normandia iluminando bois deitados, duas mulheres e duas crianças que passam, um touro que sai da névoa e ataca com o focinho baixo, Félicité que lhe joga terra nos olhos para permitir aos outros saltar uma sebe; ou o porto de Honfleur com os guindastes que levantam os cavalos para depositá-los nos barcos, o sobrinho marinheiro que Félicité consegue ver por um instante e que logo desaparece oculto por uma vela; e sobretudo o pequeno quarto de Félicité, cheio de objetos, lembranças de sua vida e da vida dos patrões, onde uma pia de água benta feita com casca de coco está ao lado de um pedaço de sabão azul, tudo dominado pelo famoso papagaio empalhado, espécie de emblema daquilo que a vida não deu à pobre doméstica. É através dos mesmos olhos de Félicité que vemos todas essas coisas; a transparência das frases da narrativa é o único meio possível para representar a pureza e a nobreza natural ao aceitar o bem e o mal da vida.
Na “Légende de saint Julien l’Hospitalier”, o mundo visual é o de uma tapeçaria ou de uma miniatura num código ou de um vitral de catedral, mas ele é vivido de dentro como se também nós fôssemos figuras bordadas ou reduzidas ou compostas de vidros coloridos. Uma profusão de animais de várias formas, própria da arte gótica, domina o conto. Cervos, gamos, falcões, galos-do-mato, cegonhas: o caçador Julien é empurrado na direção do mundo animal por uma inclinação sanguinária e o relato decorre na fronteira sutil entre crueldade e piedade, até que não nos parece ter entrado no próprio coração do universo zoomorfo. Numa página extraordinária, Julien se encontra sufocado por penas, pelos, escamas, a floresta em torno dele se transforma num bestiário amontoado e emaranhado de toda a fauna inclusive exótica. (Não faltam os papagaios, como numa saudação à distância para a velha Félicité.) Nessa altura, os animais não são mais o objeto privilegiado de nossa visão, mas nós próprios passamos a ser capturados pelo olhar dos animais, pelo firmamento de olhos que nos fixam; sentimos que estamos passando para o outro lado: parece-nos ver o mundo humano através de redondos e impassíveis olhos de coruja.
O olho de Félicité, o olho da coruja, o olho de Flaubert. Compreendemos que o verdadeiro tema desse homem, aparentemente tão fechado em si mesmo, foi a identificação com o outro. No abraço sensual de saint Julien no leproso podemos reconhecer o árduo ponto de chegada para o qual tende a ascese de Flaubert como programa de vida e de relação com o mundo. Talvez os Trois contes sejam o testemunho de uma das mais extraordinárias trajetórias espirituais nunca antes escrita fora do âmbito das religiões.

Italo Calvino, in Por que ler os clássicos

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