segunda-feira, 7 de setembro de 2020

O abandono

Tinha do próprio casamento e do marido morto uma lembrança penosa. O marido era uma nobre alma, que vivia para a esposa e para o filho. Mas tudo que ele fizesse, de bom, de heroico, de sublime, esbarrava diante de sua falta de amor. E isso, essa falta de amor, era pior do que o ódio. Crispava-se quando o pobre-diabo vinha fazer-lhe festa. Houve uma vez, em que não pôde, não aguentou, explodindo:
Não me beija! Não quero seu beijo! Que coisa aborrecida!
Ele já estava doente, na ocasião. Foi talvez este episódio que antecipou o fim. Seis meses depois ela, sem nenhum luto interior, tinha a sua primeira experiência amorosa, na pessoa do casado Romualdo. Viu, então, que o marido a interessava menos que o mata-mosquitos anônimo que vinha pôr creolina no ralo. Foi uma paixão feroz que acabou, como vimos, da maneira mais estúpida do mundo. Durante dias, Lucília, numa tristeza obtusa, esperou um telefonema, um bilhete, um recado. Nada. Absolutamente nada. Depois soube, por terceiros, que ele andava com uma datilógrafa extranumerária numa autarquia; tinham sido vistos no Passeio Público, onde tiravam retratos, no lambe-lambe. Lucília, fora de si, encerrava-se no quarto, ficava horas, de bruços, na cama, chorando. Já o julgamento do filho não a interessava mais. O garoto, diante do seu pranto, perguntava:
Que é que a senhora tem, mamãe?
Não aborrece! Não amola! Sai daqui, anda!
Na presença do filho, ligava para o escritório do bem-amado. De lá, queriam saber quem era.
Lucília se identificava. Então, a resposta infalível era: “Não está.” Uma vez, porém, coincidiu que o próprio atendesse. Mas quando percebeu que era ela, explodiu:
Me deixa em paz, sim? Quero sossego! Vê se não me chateia.
O filho não fazia comentário. Era uma testemunha muda de tudo. Guardara, porém, o nome e o repetia: “Romualdo, Romualdo.” Conhecia-o, de vista. Pensava nele, dia e noite, com essa obstinação de amor ou de ódio. E já não saía mais de casa, não jogava mais bola; passava as horas ao lado de Lucília, de olhos muito abertos, como se esse desespero o fascinasse, apesar de tudo. Ouviu quando a mãe, numa crise maior, amadiçoou o homem que a abandonara:
Tomara que ele morra, meu Deus! Fique debaixo de um automóvel! Tomara, meu Deus!
Por fim, ela já não queria mais nada; ou, por outra, queria morrer. Não comia e seu desmazelo, de atitudes, de roupas, de higiene, era aterrador. Passava dias com uma mesma combinação. Outras vezes, do fundo do seu desespero, fazia a reflexão: “Há três dias que não escovo os dentes.” O filho se abraçava a ela, chorava:
Não fique assim, mamãe! Não chore mais!
Certa vez, na rua, o garoto ouviu dizer que não se nega nada a quem está morrendo, a quem vai morrer. O “último” pedido de alguém, justamente por ser o “último” é alguma coisa de terrível e sagrado, que cumpre obedecer, sob pena de maldições tremendas. Então, afirmou:
Ele volta, mamãe! Volta, sim! Juro por Deus!
Nelson Rodrigues, in A vida como ela é

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