Enfim
um bolero, n’est pas madame? Fui eu que subornei a
orquestra. Agora podemos dançar juntos, eu sentindo os seus seios
contra o meu peito, você sentindo as minhas medalhas. O bolero
favorece a minha perna mecânica, ao contrário do tango, que também
cultivo, mas só em teoria, senão eu caio na primeira rabanada. O
bolero também nos permite falar um no ouvido do outro, ao contrário
dessas danças modernas, nas quais a única comunicação possível
entre os pares é o sinal semafórico. Nenhuma conversa é tão
privada e discreta quanto a de um homem e uma mulher dançando um
bolero, o homem cuidando para não engatar os lábios num brinco ao
mordiscar o lóbulo, onde a mulher é mais tenra, a mulher se
permitindo dizer baixinho tudo que jamais diria em público,
principalmente ao alcance dos ouvidos do marido. Existe um marido,
pois não, madame? Deve haver um marido, senão nada disto — este
salão, este bolero, seus seios contra o meu peito e a minha ereção
— tem sentido. O essencial numa sedução não é o sedutor nem a
seduzida, é o marido. Todo o drama, toda a aventura, toda a glória
e o prazer de uma sedução está centralizada no marido enganado. Um
caso sem marido é como um merengue sem recheio, uma casca farofenta
encobrindo o nada. Seu marido está nos vendo? Está seguindo nossos
passos, salivando como um cão raivoso? Sinto seus olhos na minha
nuca, talvez medindo-a para um golpe de cutelo, como o que mata os
touros que se recusam a morrer pela espada. Sim, também já fui
toureiro. E motociclista. E astronauta. E ator. E malabarista de
circo. E físico nuclear. O que a gente não faz para
impressioná-las, hein, madame? Posso desafiar o marido para um
duelo, se lhe convier. Sim, sou do tempo dos duelos, quando a honra
se lavava com sangue, nem que fosse apenas o sangue de um arranhão.
Madame já adivinhou que sou um homem antigo. Para mim, nada é mais
apropriado do que um bolero acabar num duelo. Posso mandar seu marido
para um hospital. Assim nem ele ficaria sem sua honra nem nós
ficaríamos sem um marido enganado vivo para apimentar nossa união.
Como eu perdi minha perna? Foi numa dessas guerras, não me lembro
mais qual. Foi em Waterloo, foi no Somme, foi no desembarque em Omaha
Beach, quem se lembra? E tudo para impressioná-la, madame. Eu ainda
não a conhecia, nem sentira os seus seios contra o meu peito, e já
estava matando e morrendo e construindo civilizações para
impressioná-la. Esta sedução não começa aqui, madame, começou
há milhares de anos, quando nós descemos das árvores para a savana
e passamos a andar de pé, com a genitália exposta. Como isto não
as impressionou muito, recorremos a outros meios de sedução.
Brigas, guerras, atos de bravura e audácia intelectual, boleros.
Tudo para dormir com você, madame. Dormir com você. Fazermos um
programa maravilhoso num lugar discreto. Champanhe, alguns canapês,
cortinas de veludo cerradas, um disco de vinil na vitrola (sou um
homem antigo). Não queremos outra coisa além de dormir com você.
Nunca quisemos. E... glubz! Desculpe madame. Acho que engoli o seu
brinco.
Luís
Fernando Veríssimo, in Os últimos quartetos de Beethoven
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