Rente
que nesse resto de tempo decerto cruzaram palavras, que não deram
para eu ouvir. Pois porque Zé Bebelo teve ordem de falar, devia de
ter tido. A licença. Principiou. Foi discorrendo vagaroso, de
entremeado, coisa sem coisa. Vi e vi! ele estava só apalpando o vau.
Sujeito finório. Aí o qualquer zunzo que houvesse, ele colhia e
entendia no ar ― estava com as orêlhas por isso, aquela cabeça
sobrenadando. Já um pouco descabelado. Mas serenou sota, para
diante.
―
...Altas
artes que agradeço, senhor chefe Joca Ramiro, este sincero
julgamento, esta bizarria... Agradeço sem tremor de medo nenhum, nem
agências de adulação! Eu. José, Zé Bebelo, é meu nome: José
Rebêlo Adro Antunes! Tataravó meu Francisco Vizeu Antunes ― foi
capitão-de-cavalos... Demarco idade de quarenta-e-um anos, sou filho
legitimado de José Ribamar Pachêco Antunes e Maria Deolinda Rebêlo;
e nasci na bondosa vila mateira do Carmo da Confusão...
Oragos.
Para que a tanta sensaboria toda, essas filosofias? Mas porém ele
pronunciava com brio, sem as papeatas de em antes, sem o remonstrar
nem os reviretes:
―
...Agradeço
os que por mim bem falaram e puniram... Vou depor. Vim para o Norte,
pois vim, com guerra e gastos, à frente de meus homens, minha
guerra... Sou crescido valente, contra homens valentes quis dar o
combate. Não está certo? Meu exemplo, em nomes, foram estes: Joca
Ramiro, Joãozinho Bem-Bem, Só Candelário!... e tantos outros
afamados chefes, uns aqui presentes, outros que não estão...
Briguei muito mediano, não obrei injustiça nem ruindades nenhumas;
nunca disso me reprovam. Desfaço de covardes e de biltragem! Tenho
nada ou pouco com o Governo, não nasci gostando de soldados... Coisa
que eu queria era proclamar outro governo, mas com a ajuda, depois,
de vós, também. Estou vendo que a gente só brigou por um
mal-entendido, maximé. Não obedeço ordens de chefes políticos. Se
eu alcançasse, entrava para a política, mas pedia ao grande Joca
Ramiro que encaminhasse seus brabos cabras para votarem em mim, para
deputado... Ah, este Norte em remanência: progresso forte, fartura
para todos, a alegria nacional! Mas, no em mesmo, o afã de política,
eu tive e não tenho mais... A gente tem de sair do sertão! Mas só
se sai do sertão é tomando conta dele a dentro... Agora perdi.
Estou preso. Mudei para adiante! Perdi ― isto é ― por culpa de
má-hora de sorte; o que não creio. Altos descuidos alheios... De
ter sido guardado prisioneiro vivo, e estar defronte de julgamento,
isto é que eu louvo, e que me praz. Prova de que vós nossos
jagunços do Norte são civilizados de calibre! que não matam com o
distrair de mão um qualquer inimigo pegado. Isto aqui não são
essas estrebarias... Estou a cobro de desordens malinas. Estimei. Dou
viva Joca Ramiro, seus outros chefes, comandantes de seus terços. E
viva sua valente jagunçada! Mas, homem sou. Sou de altas cortesias.
Só que medo não tenho; nunca tive, no travável...
Anda
que fez um gesto bonito. Assaz, aí, se espiritou. Ao que, de vez,
foi grandeúdo!
―
...Uê,
vim guerrear, de peito aberto, com estrondos. Não vim socolor de
disfarces, com escondidos e logro. Perdi, por um desguardo. Não por
má chefia minha! Não devia de ter querido contra Joca Ramiro dar
combate, não devia-de. Não confesso culpa nem retrauta, porque
minha regra é! tudo que fiz, valeu por bem feito. E meu consueto.
Mas, hoje, sei! não devia-de. Isto é! depende da sentença que vou
ter, neste nobre julgamento. Julgamento, digo, que com arma ainda na
mão pedi; e que deste grande Joca Ramiro mereci, de sua alta
fidalguia... Julgamento ― isto, é o que a gente tem de sempre
pedir! Para que? Para não se ter medo! E o que comigo é. Careci
deste julgamento, só por verem que não tenho medo... Se a condena
for às ásperas, com a minha coragem me amparo. Agora, se eu receber
sentença salva, com minha coragem vos agradeço. Perdão, pedir, não
peço! que eu acho que quem pede, para escapar com vida, merece é
meia-vida e dobro de morte. Mas agradeço, fortemente. Também não
posso me oferecer de servir debaixo darmas de Joca Ramiro ― porque
tanto era honra, mas não condizia bem. Mas minha palavra dando,
minha palavra as mil vezes cumpro! Zé Bebelo nunca roeu nem torceu.
E, sem mais por dizer, espero vossa distinta sentença. Chefe.
Chefes.
Digo
ao senhor, foi um momento movimentado.
Zé
Bebelo, acabando nas palavras, ali sentadinho ficou, repequeno,
pequenininho, encolhido ao mais. Já um pouco descabelado. Era uma
bolinha de gente. Fechou-se um homem. Olhei, olhei. Só a gente mal
ouvisse o sussurro de todos lá; que foi bom: conheci que era. ― O
sujeito machacá! Assopres! ― Arre, maluco é ― mas frege...
Capaz que castra garrote com as unhas dos dedos... Não o que
Diadorim não disse ― mas ele estava assim por pálido. Vai, vi os
chefes. Eles conversaram um circuitozinho, ligeiro. O Hermógenes e o
Ricardão ― e Joca Ramiro para eles sorriu, seus compadres. O
Ricardão e o Hermógenes ― eles dois eram chouriço e morcela. Só
Candelário ― conforme seus conformes, avançante ― Joca Ramiro
sorriu para Só Candelário. O jeito de João Goanhá ― richarte.
Só Titão Passos espiava desolhadamente, ele tão aposto homem tão
bom, tão sério: com as mãos ajuntadas baixo, em frente da barriga
― só esperava o nada virar coisas. Acontecesse o que. Joca Ramiro
ia decidir! Sobre o simples, o Hermógenes ainda ia se debruçar,
para um dizer em orêlha. Mas Joca Ramiro encurtou tudo num gesto.
Era a hora. O poder dele veio distribuído endireito em Zé Bebelo. O
quando falou:
―
O
julgamento é meu, sentença que dou vale em todo este norte. Meu
povo me honra. Sou amigo dos meus amigos políticos, mas não sou
criado deles, nem cacundeiro. A sentença vale. A decisão. O senhor
reconhece?
―
Reconheço
― Zé Bebelo aprovou, com firmeza de voz, ele já descabelado
demais. Se fez que as três vezes, até: ― Reconheço. Reconheço!
Reconheço... ― estréques estalos de gatilho e pinguelo ― o que
se diz! essas detonações.
―
Bem.
Se eu consentir o senhor ir-se embora para Goiás, o senhor põe a
palavra, e vai?
Zé
Bebelo demorou resposta. Mas foi só minutozinho. E, pois!
―
A
palavra e vou, Chefe. Só solicito que o senhor determine minha ida
em modo correto, como compertence.
―
A
falando?
―
Que!
se ainda tiver homens meus vivos, presos também por aí, que tenham
ordem de soltura, ou licença de vir comigo, igualmente…
Ao
que Joca Ramiro disse! ― Topo. Topo.
―
...E
que, tendo nenhum, eu viaje daqui sem vigia nenhuma, nem guarda, mas
o senhor me fornecendo animal-de-sela arreado, e as minhas armas, ou
boas outras, com alguma munição, mais o de-comer para os três
dias, legal...
Ao
que aí Joca Ramiro assim três vezes! ― Topo. Topo!
―
...Então,
honrado vou. Mas, agora, com sua licença, a pergunta faço! pelo
quanto tempo eu tenho de estipular, sem voltar neste Estado, nem na
Bahia? Por uns dois, três anos?
―
Até
enquanto eu vivo for, ou não der contra-ordem...
―
Joca
Ramiro aí disse, em final. E se levantou, num de repente. Ah, quando
ele levantava, puxava as coisas consigo, parecia ― as pessoas, o
chão, as árvores desencontradas. E todos também, ao em um tempo ―
feito um boi só, ou um gado em círculos, ou um relincho de cavalo.
Levantaram campo. Reinou zoeira de alegria! todo o mundo já estava
com cansaço de dar julgamento, e se tinha alguma certa fome. Diadorim
me chamou, fomos caminhando, no meio da queleleia do povo. Mesmo eu
vi o Hermógenes! ele se amargou, engulindo de boca fechada. ―
Diadorim ― eu disse ― esse Hermógenes está em verde, nas portas
da inveja... ― Mas Diadorim por certo não me ouviu bem, pelo que
começou dizendo: ― Deus é servido... Não sosseguei. Aquele
pessoal tribuzava. O encarregado da Sempre-Verde abriu cozinha:
panelas grandes e caldeirões, cozinhando de tudo o que vale a valer.
Tinha sempre algum batendo mão-de-pilão. Digo, não por nada não,
mas pelo exato ser: eu tinha estalando nos meus olhos a lembrança do
Hermógenes, na hora do julgamento. De como primeiro ele, sortuno,
não se sobressaía, só escancarava muito as pernas, facãozão na
mão; mas depois ficou artimanhado, com uma tristeza fechada aos
cantos, como cão que consome raivas. E o Ricardão? Esse: uma
pesadureza na cara toda, mas, quando esbarrou de cochilar, aqueles
olhos grossos, rebolando que nem apostemados, sem bom preceito.
Assente, enfim, tudo estava passado, terminado. Estava? Pois, pedi
espera a Diadorim, na beira do rego, eu queria cuidar do meu cavalo,
dissesse, desarrear e escovar. Dei com o Hermógenes. Dito, a bem, eu
cacei onde estava o Hermógenes, tempo parei perto dele. Virando que
eu quis ir lá, e escutar, quase quis. Um dizer ouvi: ―
...Mamãezada... Ao que seria? O Hermógenes não era nenhum
toleimado, para desfazer na decisão de Joca Ramiro.
Mamãezada?
Mais não ouvi, relembro que não sei direito. Com pouco, Zé Bebelo
estava dando as despedidas. Se viu, montado num bom cavalo de duas
cores, arreado com sela boa de Minas-Velhas. Deram que levasse
carabina, suas outras armas, e cruz-cruz cartucheiras. Aí já tinha
jantado. E o bornal com matlotagem. Sobre o cavalo se houve, se upou
na sela. Se foi. Saíu em marcha de estrada, sem olhar para trás, o
sol na beira. Só o Triol devia de prestar acompanhamento a ele, por
o uso de resguardado território, de uma légua. Me deu certa
tristeza. Mas a minha satisfação ainda era maior.
Guimarães Rosa, in Grande sertão: veredas
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