quarta-feira, 29 de julho de 2020

Misto-Quente – 22

Um dia, semelhante ao que acontecera na escola fundamental com David, um garoto se apegou a mim. Era pequeno e magro e não tinha quase nenhum fio de cabelo no topo da cabeça. Os caras o chamavam de Carequinha. Seu nome verdadeiro era Eli LaCrosse. Eu gostava de seu nome real, mas não gostava da sua pessoa. Ele se grudara em mim. Era uma figura tão lastimável que não podia dizer a ele simplesmente que sumisse. Era como um cachorro vira-lata, faminto, cansado de ser expulso a patadas. Ainda assim, era desagradável tê-lo à minha volta. Contudo, desde que eu percebera sua aura de vira-lata, deixei que ficasse por perto. Usava uma praga em quase todas as frases que saíam de sua boca, no mínimo uma praga, mas era tudo pose, estava longe de ser um cara durão, era medo puro. Eu não tinha medo, mas era um sujeito confuso. Assim, talvez formássemos um par adequado.
Acompanhava-o até em casa todos os dias depois das aulas. Vivia com sua mãe, seu pai e seu avô. Tinham uma casinha do lado de lá um pequeno parque. Eu gostava do lugar, tinha grandes árvores que davam sombra, e desde que algumas pessoas haviam me dito que eu era feio, sempre preferi a sombra ao sol, a escuridão à luz.
Durante nossas caminhadas para casa, Carequinha tinha me falado de seu pai. Ele fora médico, um cirurgião de sucesso, mas tinha perdido sua licença em função da bebida. Um dia conheci o pai do Carequinha. Estava sentado numa cadeira debaixo de uma árvore, sem fazer nada.
Pai – ele disse –, esse é o Henry.
Olá, Henry.
Lembrei-me de quando vira meu avô pela primeira vez, parado nos degraus em frente à sua casa. A diferença é que o pai do Carequinha tinha a barba e o cabelo pretos, mas seus olhos eram iguais – brilhantes e luminosos, tão estranhos. E ali estava Carequinha, o filho, sem qualquer tipo de brilho.
Vamos – disse Carequinha –, venha comigo.
Entramos em uma adega, debaixo da casa. Era escura e úmida e ficamos parados até que nossos olhos se acostumassem à escuridão. Então pude ver uma porção de barris.
Esses barris estão cheios de diferentes qualidades de vinho – disse Carequinha. – Cada barril tem uma torneira. Quer experimentar algum deles?
Não.
Vamos lá, apenas tome um maldito gole.
Pra quê?
Mas que maldição, você se considera um homem ou não?
Sou durão – eu disse.
Então experimenta, caralho!
Ali estava o Carequinha querendo me desafiar. Nenhum problema. Fui até um barril e abaixei a cabeça.
Abra a maldita torneira! Abra essa maldita boca!
Há alguma aranha por aqui?
Vá em frente, desgraçado!
Abri a boca e a torneira. Um líquido malcheiroso jorrou para dentro da minha goela. Cuspi tudo.
Não seja um veadinho! Engula, caralho!
Abri novamente a torneira e minha boca. O líquido malcheiroso entrou e eu o engoli. Fechei a torneira e fiquei ali parado. Pensei que fosse vomitar.
Agora é a sua vez de beber um pouco – eu disse ao Carequinha.
Claro – ele disse –, não estou me cagando de medo!
Abaixou-se na frente de um barril e deu uma boa golada. Um merdinha daqueles não ia me superar. Fui até outro barril, abri a torneira e dei um gole. Fiquei de pé. Começava a me sentir bem.
Ei, Carequinha – eu disse –, gostei desse negócio.
Então, caralho, beba um pouco mais.
E foi o que fiz. O gosto estava melhorando. Eu estava melhorando.
Esse negócio é do seu pai, Carequinha. Eu não devia beber tudo.
Ele não se importa. Parou de beber.
Nunca me sentira tão bem. Era melhor do que masturbação.
Fui de barril em barril. Era mágico. Por que ninguém havia me falado a respeito disso? Com a bebida, a vida era maravilhosa, um homem era perfeito, nada mais poderia feri-lo.
Fiquei de pé, ereto, e encarei o Carequinha.
Onde está a sua mãe? Vou foder sua mãe!
Mato você, seu filho-da-puta, fique longe da minha mãe!
Você sabe que eu posso lhe dar uma surra, Carequinha?
Sim.
Tudo bem, vou deixar sua mãe em paz.
Vamos embora então, Henry.
Mais um trago...
Fui até um barril e dei uma longa talagada. Depois subimos a escada da adega. Quando saímos, o pai do Carequinha ainda estava sentado na sua cadeira.
Vocês estavam na adega, não?
Sim – respondeu o Carequinha.
Começando um pouco cedo, não acham?
Não respondemos. Caminhamos até a avenida e Carequinha e eu fomos até uma loja que vendia chicletes. Compramos várias caixas e enfiamos todos os chicletes em nossas bocas. Ele estava preocupado que sua mãe descobrisse. Eu não me preocupava com nada. Sentamos num banco de parque e mascamos nossos chicletes. Pensei: bem, agora descobri alguma coisa, alguma coisa que irá me ajudar nos tantos dias que ainda hão de vir. A grama do parque parecia mais verde, os bancos do parque se tornaram mais bonitos, e as flores se esforçavam nesse sentido. Talvez essa coisa não fosse boa para cirurgiões, mas alguém que escolhia essa carreira já devia ter algo de errado na cabeça desde o princípio.
Charles Bukowski, in Misto-Quente

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