Ser
milionário tem as suas vantagens. A principal é poder satisfazer
seus desejos, suas aspirações, suas vontades. Sou um milionário,
não pertenço à petite bourgeoisie, classe social que,
segundo Karl Marx e os teóricos marxistas, incluía comerciantes e
profissionais liberais. A pequena burguesia é diferente da classe
capitalista. E a classe capitalista tem vários níveis. Pertenço ao
nível mais elevado da classe capitalista, tenho tudo, posso comprar
tudo.
Eu
estava pensando nessa minha capacidade quando o doutor Everaldo
apareceu. Como sempre ele tinha aquilo em volta do pescoço — nunca
me lembro do nome dessa coisa.
“Tudo
bem?”, ele perguntou.
“Tudo
bem”, respondi. “Estou pensando em comprar uma pirâmide.”
“Pirâmide?”
“Sim,
uma pirâmide. Daquelas que tem no Egito. Um daqueles monumentos de
alvenaria, com uma base quadrada e quatro faces retangulares que
convergem para um vértice.”
“Interessante”,
disse o doutor Everaldo.
“Algumas
pirâmides têm os vértices forjados em ouro.”
“Interessante”,
disse o doutor Everaldo.
“Devido
ao alto grau de complexidade arquitetônica, aos esforços empregados
em suas construções, e a sua notável beleza, as pirâmides são
culturalmente associadas ao misticismo, sendo a fonte de muitas
hipóteses e lendas acerca dos mistérios de sua construção e sua
finalidade.”
“Interessante”,
disse o doutor Everaldo.
“As
pirâmides têm uma estrutura subterrânea complexa, composta de
corredores e salas. A sala funerária é escavada no solo. Depois da
vigésima dinastia, as pirâmides entraram na sua fase clássica com
a construção da ampla necrópole de Gizé. Primeiramente, os
egípcios escavavam um enorme complexo subterrâneo e depois
construíam a gigante estrutura exterior da pirâmide. Li isso num
livro sobre o Egito e decorei. Tenho uma memória muito boa.”
“Interessante”,
disse o doutor Everaldo.
“A
pirâmide que eu vou comprar é essa de Gizé.”
“Interessante”,
disse o doutor Everaldo.
“A
palavra ‘pirâmide’ não vem da língua egípcia. Formou-se a
partir do grego: pyra, que quer dizer fogo, luz, símbolo, e
midos, que significa medidas.”
“Interessante”,
disse o doutor Everaldo.
“Eu
tenho esta foto da pirâmide de Gizé.”
“Interessante”,
disse o doutor Everaldo.
“Para
os egípcios, a pirâmide representava os raios do Sol, brilhando em
direção à Terra. Todas as pirâmides do Egito foram construídas
na margem oeste do Nilo, na direção do sol poente. Os egípcios
acreditavam que, enterrando seu rei numa pirâmide, ele se elevaria e
se juntaria ao Sol, tomando o seu lugar de direito com os deuses.”
“Interessante”,
disse o doutor Everaldo.
“As
pirâmides...”
“Depois
o senhor pode me dar mais informações sobre as pirâmides. Agora
está na hora do seu tratamento. Quero lhe dizer uma coisa: eu
gostaria de ter uma memória boa como a sua. Está na hora do senhor
tomar os seus remédios.”
O
doutor Everaldo sempre me dava remédios, lembro de alguns nomes,
Haldol, Rohypnol, Prometazina... Eu gostava desses remédios.
Depois,
o doutor Everaldo me colocou numa cama, mediu minha pressão
cardíaca, me anestesiou com Brevital. Em seguida colocou uns fios e
uma chapa na minha cabeça e enfiou na minha boca um pequeno rolo de
plástico para eu morder na hora do choque. Então iniciou o estímulo
elétrico. Eu fazia isso duas vezes por mês.
Depois
eu me sentia muito bem, como se tivesse tomado sorvete de manga. Eu
adoro sorvete de manga.
Rubem
Fonseca, in Histórias curtas
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