A atriz Lana Turner e o mafioso Johnny
Stompanato em 1957
O
material desta história: basicamente, duas mulheres. Capazes, no
entanto, de se multiplicarem infinitamente. São Lana Turner e uma
outra, que se apresenta sem nome, sem rosto e sem biografia, a não
ser dados fragmentários, vagas insinuações. Alguém que talvez nem
seja uma mulher, mas sim um espelho, embora fosco. Ou um ventríloquo,
que fala apenas através da imagem da atriz, o seu boneco. Não se
enganem, porém: o único personagem verdadeiro, o ponto de
referência para se poder entrançar os fios díspares desta trama,
formando um tapete, a tela em branco que serve para o desdobramento
ilimitado do sonho, portanto da realidade, este personagem sou eu. Em
outras palavras, Lana Turner.
(Lana,
uma das primeiras grandes estrelas, quando surgia o star-system de
Hollywood: sem nenhuma tradição ou modelo a serem seguidos, uma
figura de ruptura na sociedade americana da época, com um papel ou
um poder “de homem”. Lana para além da própria Lana, o símbolo
que ela foi, o mito que se criou em torno dela: deusa ou demônio, a
vamp e seu it. O que de Lana foi apresentado para o consumo de
milhares de pessoas desejosas de entrever — fosse para idolatrar,
destruir ou devorar — os bastidores de uma “vida glamourosa”;
em grande estilo, a “felicidade” e a “dor”.) Pois Lana
Turner, como Madame Bovary para Flaubert, Lana Turner c’est moi.
Foi o que também pensou a segunda mulher, a outra, o espelho.
(Chama-se Melissa? Ou será Teresa? Quem sabe Joaquina? Doroteia?)
Folheava uma revista, na varandinha de seu apartamento, quando
encontrou, com um repentino susto de reconhecimento, com uma estranha
e cúmplice compreensão (ela, independente, mitificada, distorcida),
o retrato não muito antigo de Lana, numa reportagem nostálgica
sobre grandes estrelas do passado.
Sim,
aqui estão a pele muito bronzeada pelo sol das piscinas de Beverly
Hills — ou das praias da Zona Sul — as unhas vermelhas e
compridas, o cabelo platinado e, no rosto, vestígios de beleza e as
marcas do tempo. Mas, sobretudo, o sorriso de Lana, o seu sorriso de
atriz, quase um esgar. Um sorriso em que se misturam ironia e dor e
desafio e força e patética impotência, o sorriso heroico de uma
sobrevivente. De criatura disposta, talvez por não haver outro
jeito, a levar o espetáculo até o fim: the show must go on.
(Do que é feita uma vida humana senão de pequenos ritos, cerimônias
e celebrações?)
Numa
nevoenta tarde de sábado, a observar esgarçadas nuvens que se
despejam sobre as encostas arborizadas do Corcovado, defronte,
Melissa revê — eu revelo —, numa vertigem de cenas históricas,
o parentesco e as diferenças entre ela e Lana Turner; a partir da
colonização americana por puritanos anglo-saxões e da vinda para o
Brasil de portugueses degredados, com sangue mouro.
Como
ponte entre dois hemisférios, ligando misteriosamente Hollywood, a
Califórnia do antigo boom de ouro, ao ouro mineiro que os
inconfidentes reivindicaram, sorri enigmático na revista (e na vida)
o rosto de Lana Turner (o de Melissa, o meu).
A
reportagem lembra a trajetória gloriosa e sofrida da atriz, seus
vários maridos, uma carreira movimentada (psicóloga? publicitária?
jornalista? atriz mesmo?) e muitas viagens, incluindo umas férias no
Havaí, em companhia de uma amiga. Mais precisamente, em Honolulu, na
praia de Waikiki, onde se descobriu grávida do segundo marido, o
trompetista Artie Shaw, já depois de estarem separados. “O que
resultou num aborto e em novas infelicidades”, acrescenta a
matéria, baseada no livro autobiográfico Lana, the lady, the
legend, the future.
jornalista
explica que, já no primeiro casamento, com o advogado Greg Bautzer,
ela não sentiu nenhum prazer, ao “perder a virgindade”. Ele cita
palavras de Lana: “Eu não tinha ideia de como devia agir. O ato em
si doeu como diabo e devo confessar que não senti nenhum tipo de
prazer. Mas gostava de ter Greg perto de mim e ‘pertencer’ a ele,
afinal.” Foi no Hotel Toriba, em Campos do Jordão, lembra Melissa.
E retifica a reportagem: não chegou sequer a perder a virgindade
naquela lua-de-mel, os dois tão desajeitados. Dor sentiu, confirma:
teria um estreitamento vaginal? um hímen demasiado resistente? Mas
não se falava dessas coisas, naquele tempo, e então tudo foi se
ajeitando, ou se destruindo, em silêncio. Lana, garante o repórter,
só atingiu a maturidade sexual por volta dos 40 anos, ao cabo de um
aprendizado com um total de cerca de 18 homens — o que, ele
acrescenta, já parece um número modesto, para os padrões atuais. A
conclusão foi tirada, explica, a partir de indicações implícitas,
porque o assunto não era abordado diretamente.
A
matéria adianta que as dificuldades emocionais de Lana resultaram,
provavelmente, de uma sucessão de traumas infantis. “Quando tinha
dez anos, seu pai foi assassinado num beco escuro.” Segue-se a
declaração da atriz: “Quando o vi no caixão, fiquei
horrorizada.” Trauma, caixão, pai, vai lendo Melissa, com um
calafrio. Mais que o encadeamento dos fatos expostos, são as
palavras da reportagem que estabelecem a estranha conexão entre ela
e Lana Turner, como um código a ser decifrado.
A
impressão se acentua no parágrafo seguinte, uma transcrição da
“ficha psicológica” de Lana Turner mantida pelo estúdio: “Julia
Jean Mildred Frances Turner, nascida em 8 de fevereiro de 1920.
Confusa, desprotegida. Insegura desde a infância, quando atravessou
períodos de opressão física, mental e moral, pelos quais procurou
compensação na vida adulta. Sua afetividade, uma sucessão de
tentativas frustradas de estabilização. A filha, Cheryl, carregou a
mãe como uma carga emocional negativa.
Confusa.
Desprotegida. E, embora o ano fosse outro, a data de nascimento era a
mesma. Como se existisse, embaixo da história de Lana Turner, uma
outra, paralela, embutida — a sua, a minha. Estará Melissa/estarei
eu enlouquecendo? Teremos escolhido, em nossa paranoia, em vez do
habitual Napoleão Bonaparte, Lana Turner como alter-ego?
Melissa
(Erica?) corre ao banheiro, perscruta no espelho, com renovada
perplexidade, o próprio rosto. Ela, Lana Turner. Mas não
propriamente uma atriz, mais para trapezista ou bailarina da corda
bamba. Sorri para ela, no espelho, um rosto sem nenhuma inocência,
mas ao qual o tempo conferiu um toque de pureza cínica.
Até
onde posso ir, até onde irei, questiona-se Melissa, estremecendo.
Porque os anos tinham passado, como um vento frio. E, entre maridos,
viagens, uma carreira movimentada, tragédias — ah, tantas coisas
se haviam tornado, de repente, definitivas. Amores perdidos,
aventuras não vividas e, o que é pior, não mais desejadas.
De
volta à cadeira de lona da varanda, bebericando um uísque, Melissa
(Dora?) lê na reportagem, logo adiante, um confortador comentário
de Lana: “Não tive uma vida fácil mas, sem dúvida, minha vida
está longe de ter sido chata. Sinto um certo orgulho de ter
conseguido chegar até aqui.” O que não a impediu, certa vez, como
conta o repórter, de tentar o suicídio, cortando os pulsos (Melissa
vira as palmas das mãos para cima, observa as cicatrizes ainda
rosadas). Ao sair do hospital, já recuperada, “ela parecia uma
vestal, toda vestida de branco, sorrindo, os inefáveis óculos
escuros ajudando a lhe encobrir o rosto”. Acrescenta a matéria:
“Via-se, imediatamente, que era uma estrela. Tinha o que chamamos
de star-quality.” Logo depois, vem a “versão verdadeira” da
descoberta de Lana Turner. Ao contrário do que as revistas da época
publicaram, afirma o jornalista, o fato não aconteceu no Schwab’s,
a lanchonete, em Hollywood Boulevard, frequentada pelas moças que
queriam arranjar papéis em filmes. A própria Lana explica: “Foi
num lugar chamado Top Hat Café — acho que hoje é um posto de
gasolina. E eu não estava tomando refresco coisa nenhuma. Meu
dinheiro só dava para uma Coca-Cola.”
Mas
ela confirma que, como foi divulgado, o sujeito ao lado fez a
clássica pergunta: “Você gostaria de trabalhar no cinema?” E
ela deu a resposta clássica: “Não sei, preciso perguntar a mamãe.
A
etapa seguinte foi a escolha de um nome artístico. Havia no estúdio,
conta a matéria, um catálogo já preparado, e alguém começou a
dizer todos em voz alta. De repente, a própria atriz sugeriu Lana:
“Não sei de onde tirei. Mas reparem que é Lah-nah, não quero
ouvir meu nome pronunciado de outra maneira.” Em 1937, ela faria
Esquecer, nunca e, no ano seguinte, ingressava na Metro, onde se
tornou conhecida como “a garota do sueter”. Uma série de
sucessos, rosas e champanha em turbilhão. Mas o destaque da
reportagem é para o trágico episódio com Johnny Stompanato, já na
véspera de Lana perder a efêmera frescura do tempo em que as
mulheres são comparadas com flores (quando ganharia, como prêmio, a
dura máscara da fotografia, a da guerreira sobrevivente, marcas no
rosto como gloriosas cicatrizes de combate). Certo dia, “um sujeito
dizendo chamar-se John Steele telefonou para o estúdio fazendo a
corte a Miss Turner”.
Ela
o achou encantador, diz o jornalista, e acabou se envolvendo.
“Quando
descobri sua verdadeira identidade”, comentaria Lana, depois ja era
muito tarde”. Johnny Stompanato (ou Renato Medeiros) era branco
como um pão, limpo como um pão, com aquela pureza que só
conseguiria ter um jovem mafioso procurado pela polícia.
(Na
cama, como um cavalinho branco, o corpo perfeito de um rapaz de 28 ou
29 anos, dentes brancos, olhos castanhos matizados de verde, mas
quase sempre escuros, algo taciturnos. Deliciosamente sério, com um
senso permanente de dever a cumprir. Não fala, a não ser uma ou
outra palavra — é indecifrável. Mas talvez seu permanente
mistério seja, simplesmente, o da própria vida, e seu absurdo.)
Um
homem inteiro e lindo como um cavalinho branco correndo na praia, ao
entardecer. Intacto e cheio de pureza, como a juventude é pura, ele
nu, aquele corpo inteiro e forte e grande e puro, ele assim em cima
dela, grande e inteiro, ele entrando nela, ele pedindo: Melissa,
Lana, diga alguma coisa para mim, enquanto ela só gemia e gritava,
gemia e gritava, agora falando: amor, amor, amor. E logo está toda
inundada do líquido dele, com um cheiro vagamente vegetal de capim
molhado ou palmito.
Isso
vai me bastar para sempre, não vou precisar de mais nada, nunca,
pensou, quando ele saiu, batendo aporta da frente com um ruído que
ela escutou da cama. Era uma manhã nevoenta através das portas de
vidro do seu apartamento, que davam para varandinhas, lá fora, e
nuvens esgarçadas se despejavam sobre o maciço de árvores nas
encostas do Corcovado, defronte. Diria, depois, quando ele telefonou:
saí dançando aquela manhã, querido. Como se tivesse, afinal,
alcançado a eternidade, precisava morrer de repente num momento
assim.
A
matéria garante que, para Lana, começou um “terrível drama
psicológico”, enquanto “tentava livrar-se do gangster” ao
passo que ele, “utilizando todos os artifícios”, recusava-se a
sair de cena.
Quando
ela foi para a Inglaterra, conta o repórter, a fim de filmar Another
time, anotherplace (Vítima de uma paixão) pensou que estava livre
de Johnny, pelo menos por alguns meses. Mas ele conseguiu enganar as
autoridades americanas e, de repente, apareceu em Londres. Lana
procurou a Scotland Yard e Stompanato foi deportado.
Concluídas
as filmagens, ela decidiu tirar umas férias em Acapulco, sem avisar
a ninguém. “Naquela época”, diz Lana, “o trajeto mais direto
entre Londres e Acapulco era via Copenhague. Cheguei de madrugada à
Dinamarca. Alguns passageiros desceram do avião, outros subiram. Um
jovem me entregou uma rosa amarela. Peguei a flor e, de repente, vi
um rosto a meu lado: era John. Jamais descobri como ele conseguiu
chegar ali, sem que eu o visse, e como conseguiu uma passagem no
mesmo avião que eu, no assento ao lado. Mas ele estava ali.”
As
brigas entre os dois eram terríveis, lembra o repórter. Melissa
tentava evitar que Patrícia, a filha de 14 anos, escutasse — mas
nem sempre conseguia. Um dia, a porta do quarto estava aberta e a
menina pensou que ele fosse cumprir a ameaça constante — a de
navalhar o rosto de sua mãe. Correu à cozinha, pegou uma grande
faca e a enfiou no corpo do rapaz. As últimas palavras dele foram:
“O que você fez?” E a próxima etapa seria a luta nos tribunais,
quando Melissa fez a pergunta desesperada: “Não poderei tomar a
mim a responsabilidade por toda essa tragédia?”
A
imprensa, no entanto, publicou outras versões para o crime. Uma
delas era a de que Cheryl estaria apaixonada por Johnny e os dois
chegaram a fazer amor; ela o matou quando descobriu que ele voltara
para sua mãe. Mas Lana, tempos depois, prestaria uma última
homenagem a Stompanato: “Ele me cortejou como ninguém”,
declarou. (Pois a um homem a quem uma mulher permite que lhe dê o
maior prazer, ela perdoa tudo.) Depois que Cheryl foi absolvida, Lana
passou a contar com a companhia de velhos amigos, aqueles para quem
ela representava um testemunho vivo de grandes momentos da
masculinidade de cada um. Foi quando pensou que, numa outra etapa,
talvez não tão distante assim, precisaria da bondade das pessoas,
qualidade que ela própria, provavelmente, jamais tivera assim tão
disponível para oferecer a ninguém.
Começou
a se esforçar para ser mais simpática. Agora, seus maus humores já
não seriam mais compensados pela beleza fulgurante, a paixão, a
juventude, enfim. Coisas assim muito intensas que a passagem do tempo
ia fatalmente apagando, tudo se abrandava em tons pastéis,
esfumados, como a parte superior (as nuvens) de uma estampa japonesa.
Acentuou,
então, como um disfarce, uma frivolidade teatral que, se bem
reparada, era “profunda”. Talvez a coisa mais profunda que lhe
acontecera na vida, o seu sorriso-esgar. O símbolo, quem sabe, dessa
conquista que ninguém almeja, a sabedoria da meia-idade, mas que
pode tornar-se, um dia, aquilo que nos resta e nos mantém vivos.
Continuava,
contudo, a telefonar com frequência para um conhecido ou outro, no
meio da noite, à espera de uma migalha qualquer de ternura; ou,
simplesmente, para tentar expressar alguma coisa aparentemente
inexplicável porque se reduzia, no último momento, a um punhado de
pó, frases banais em que primava a insistência no eu, eu, eu.
Era
parco, pensando bem, o resultado daquele último esforço para
continuar agradando os homens, um imenso e praticamente inútil
investimento de habilidade e emoção. A qualquer momento, concluiu,
desistirá por completo, vai ficar sozinha em casa vendo antigos
filmes em seu videocassete e cozinhando para si mesma.
Ou
se perderá em longas e nostálgicas meditações, na cadeira de lona
da varandinha de seu apartamento/de sua mansão. Sim, conheço o
agridoce sabor de solidão de Lana Turner, sua crespa mordida num
sábado à tarde como este — quando, afastada dos estúdios,
definitivamente divorciada, ela bebericava seu uísque a observar as
nuvens esgarçadas que se despejavam sobre o maciço de árvores nas
encostas de Beverly Hills, defronte. (Mais que uma história, menos
que uma história. Um clima. Como uma imagem apenas entrevista, anos
atrás, e, de repente, lembrada. O repentino claro-escuro que se
formou, certo fim de tarde, num rosto de mulher, deixando-o —
apenas por um segundo, todo crestado de dourada poeira.)
Lana
ou Melissa (Sílvia? Selma? Ingrid? Laura?), uma mulher que eu queria
contar em várias versões, como nas Mil e Uma Noites. Inumerável,
proteica, com alguma coisa de hidra — da qual, cortada uma das
cabeças, outras renascessem no mesmo lugar. E cuja realidade,
sigilosa, secreta, com um sentido oculto, estivesse permanentemente
sujeita a novas interpretações, enigma que só se pode decifrar
parcialmente, a partir de algumas palavras significativas como
símbolos ou de ilações de episódios e situações deliberadamente
destacados, no texto, com a mesma técnica com que, numa matéria
jornalística, o redator faz a escolha, jamais inocente, do que vai
para o lead ou para o pé.
Lana
para além da própria Lana, inesgotável; Lana, por assim dizer, o
nosso tempo. Ou uma metáfora intemporal de amor e perdição —
Safo, George Sand, Electra. E, ainda, Lana como simples capricho
dessa outra mulher, cujo rosto não passa de um espelho, embora fosco
— do meu. Todas, no entanto, capazes de se multiplicarem
infinitamente.
Antes
de fechar para sempre a revista com a reportagem sobre grandes
estrelas do passado — permitindo que Lana (que Melissa, que eu)
continue (continuemos) a sua (a nossa) dolorida, sorridente e
solitária trajetória (para onde? para onde?), cujo significado,
para além dessas imagens glamourosas e das palavras de sentido
misteriosamente duplo desisto de captar, lanço um último olhar para
a fotografia de Lana Turner — com o melhor matiz da minha ironia,
um delicioso e amargo private joke.
Um
pouco triste, concluo agora que não era, na verdade, sobre Lana
Turner que eu queria escrever, mas sim sobre a Zona Sul do Rio de
Janeiro. Assim todo em azul, amarelo e verde, enquanto nuvens
esgarçadas se despejam, defronte, sobre o maciço de árvores nas
encostas do Corcovado e o tempo passa.
Sonia
Coutinho, in Os cem melhores contos brasileiros do século
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