Ainda
hoje despertei com a notícia que refere que um presidente africano
vai mandar exorcizar o seu palácio de trezentos quartos porque
escuta ruídos “estranhos” durante a noite. O palácio é tão
desproporcionado para a riqueza do país que demorou vinte anos a ser
terminado. As insônias do presidente poderão nascer não de maus
espíritos mas de uma certa má consciência.
O
episódio apenas ilustra o modo como, de uma forma dominante, ainda
explicamos os fenômenos positivos e negativos. O que explica a
desgraça mora junto do que justifica a bem-aventurança. A equipa
desportiva ganha, a obra de arte é premiada, a empresa tem lucros, o
funcionário foi promovido? Tudo isso se deve a quê? A primeira
resposta, meus amigos, todos a conhecemos. O sucesso deve-se à boa
sorte. E a palavra “boa sorte” quer dizer duas coisas: a proteção
dos antepassados mortos e a proteção dos padrinhos vivos.
Nunca
ou quase nunca se vê o êxito como resultado do esforço, do
trabalho como um investimento a longo prazo. As causas do que nos
acontece (de bom ou de mau) são atribuídas a forças invisíveis
que comandam o destino. Para alguns esta visão causal é tida como
tão intrinsecamente “africana” que perderíamos “identidade”
se dela abdicássemos. Os debates sobre as “autênticas”
identidades são sempre escorregadios. Vale a pena debatermos, sim,
se não podemos reforçar uma visão mais produtiva e que aponte para
uma atitude mais activa e interventiva sobre o curso da História.
Infelizmente
olhamo-nos mais como consumidores do que como produtores. A ideia de
que África pode produzir arte, ciência e pensamento é estranha
mesmo para muitos africanos. Até aqui o continente produziu recursos
naturais e força laboral. Produziu futebolistas, dançarinos,
artesãos. Tudo isso se aceita, tudo isso reside no domínio daquilo
que se entende como “natureza”. Mas já poucos aceitarão que os
africanos possam ser produtores de ideias, de ética e de
modernidade. Não é preciso que os outros desacreditem. Nós
próprios nos encarregamos dessa descrença.
O
ditado diz: “O cabrito come onde está amarrado”. Todos
conhecemos o lamentável uso deste aforismo e como ele fundamenta a
ação de gente que tira partido das situações e dos lugares. Já é
triste que nos equiparemos a um cabrito. Mas também é sintomático
que, nestes provérbios de conveniência, nunca nos identificamos com
os animais produtores, como é, por exemplo, a formiga. Imaginemos
que o ditado muda e passa a ser assim: “Cabrito produz onde está
amarrado.” Eu aposto que, neste caso, ninguém mais quer ser
cabrito.
Mia
Couto, in Os sete sapatos sujos
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