quinta-feira, 23 de janeiro de 2020

Os contadores de histórias [excerto]

 Animais como os lobos e os chimpanzés vivem numa realidade dupla. Por um lado, estão familiarizados com entidades objetivas externas, como árvores, rochas e rios. Por outro, estão cientes de experiências subjetivas que ocorrem dentro deles, como medo, satisfação e desejo. Os Sapiens, em contrapartida, vivem numa realidade com três camadas. Em acréscimo a árvores, rios, medos e desejos, o mundo Sapiens também contém histórias sobre dinheiro, deuses, nações e corporações. Com o desenrolar da história, cresce o impacto de deuses, nações e corporações em detrimento de rios, medos e desejos. Ainda há muitos rios no mundo, e as pessoas ainda são motivadas por seus medos e seus desejos, mas Jesus Cristo, a República Francesa e a Apple represam e refreiam os rios e aprenderam a moldar nossos mais profundos anseios e ânsias.
Como é provável que as novas tecnologias do século XXI tornem essas ficções ainda mais poderosas, para compreender nosso futuro precisamos compreender como as histórias sobre Jesus Cristo, a República Francesa e Apple adquiriram tamanho poder. Os humanos pensam que fazem história, mas a história comumente gira em torno da teia de histórias ficcionais. As aptidões básicas dos humanos não mudaram muito desde a Idade da Pedra. Mas a teia de histórias cresceu e ficou cada vez mais forte, o que impulsionou a história desde a Idade de Pedra até a Idade do Silício.
Tudo começou 70 mil anos atrás, quando a Revolução Cognitiva permitiu que o Sapiens começasse a falar de coisas que só existiam na sua imaginação. Nos 60 mil anos seguintes, o Sapiens teceu muitas teias ficcionais, mas elas continuavam a ser pequenas e locais. O espírito de um antepassado reverenciado e cultuado por uma tribo era completamente desconhecido de seus vizinhos, e conchas marinhas que eram valiosas numa localidade tornavam-se sem valor assim que se atravessava uma cadeia de montanhas próxima. Histórias sobre espíritos ancestrais e conchas valiosas ainda dão ao Sapiens enorme vantagem, porque elas permitiram que centenas, às vezes milhares, de Sapiens cooperassem efetivamente, o que era muito mais que neandertais ou chimpanzés eram capazes de fazer. Mas, enquanto o Sapiens permanecesse como caçador-coletor, não poderia cooperar numa escala verdadeiramente massiva, porque seria impossível alimentar uma cidade ou um reino por meio da caça e da coleta. Consequentemente, os espíritos, as fadas e os demônios da Idade da Pedra eram entidades relativamente fracas.
A Revolução Agrícola, que começou há cerca de 12 mil anos, forneceu a base material necessária para ampliar e fortalecer as redes intersubjetivas. O cultivo da terra possibilitou que se alimentassem milhares de pessoas em cidades superpovoadas e milhares de soldados em exércitos disciplinados. No entanto, as redes intersubjetivas encontraram um novo obstáculo. Para poder preservar os mitos coletivos e organizar uma cooperação massiva, os primeiros agricultores se basearam nas aptidões de processamento de dados do cérebro humano, que eram estritamente limitadas.
Os agricultores acreditavam em histórias sobre deuses grandiosos. Eles erigiam templos ao deus de sua preferência, organizavam festivais em sua homenagem, ofereciam-lhe sacrifícios e davam-lhe terras, dízimos e presentes. Nas primeiras cidades da antiga Suméria, cerca de 6 mil anos atrás, os templos não eram apenas locais de culto; eram também os mais importantes centros políticos e econômicos. Os deuses sumérios preenchiam uma função análoga à das modernas marcas e corporações. Hoje, corporações são entidades ficcionais legais que possuem propriedades, emprestam dinheiro, contratam empregados e lançam empreendimentos econômicos. Nas antigas cidades de Uruk, Lagash e Shurupak, os deuses faziam as vezes de entidades legais que podiam ser proprietárias de campos e escravos, dar e receber empréstimos, pagar salários e construir represas e canais.
Como deuses nunca morrem, e como não têm filhos para disputar sua herança, eles acumularam cada vez mais propriedades e poder. Um número crescente de sumérios viu-se trabalhando para os deuses, tomando empréstimos junto a eles, cultivando suas terras e devendo-lhes impostos e dízimos. Assim como na San Francisco de hoje João é empregado da Google, enquanto Maria trabalha para a Microsoft, na antiga Uruk uma pessoa era empregada pelo grande deus Enki, ao passo que sua vizinha trabalhava para a deusa Inana. Os templos de Enki e de Inana dominavam a linha de horizonte de Uruk, e seus logotipos divinos eram a marca de prédios, produtos e roupas. Para os sumérios, Enki e Inana eram tão reais quanto o Google e a Microsoft são reais para nós. Comparados a seus antecessores — os fantasmas e espíritos da Idade da Pedra —, os deuses sumérios eram entidades muito poderosas.
Nem é preciso dizer que os deuses efetivamente não conduziam seus negócios, pela simples razão de que não existiam exceto na imaginação humana. As atividades cotidianas eram administradas pelos sacerdotes do templo (assim como o Google e a Microsoft têm de contratar humanos de carne e osso para gerenciar seus negócios). Contudo, à medida que os deuses adquiriam mais propriedades e mais poder, os sacerdotes já não eram mais capazes de dar conta. Ainda que representassem o poderoso deus do céu ou a onisciente deusa da terra, eles mesmos eram mortais falíveis. Era difícil lembrar quais eram as propriedades, pomares e campos que pertenciam à deusa Inana, quais dos empregados já tinham recebido seus salários, quais inquilinos deixaram de pagar o aluguel e que taxas de juros a deusa cobrava de seus devedores. Esse foi um dos principais motivos pelos quais na Suméria, como em qualquer outra parte do mundo, as redes de cooperação humana não puderam se expandir significativamente, mesmo milhares de anos após a Revolução Agrícola. Não havia reinos enormes, nem extensas redes de comércio, nem religiões universais.
Esse obstáculo foi afinal removido há aproximadamente 5 mil anos, quando os sumérios inventaram a escrita e também o dinheiro. Esses irmãos siameses — nascidos dos mesmos pais, ao mesmo tempo e no mesmo lugar — acabaram com as limitações de processamento do cérebro humano. A escrita e o dinheiro possibilitaram que se começasse a coletar impostos de centenas de milhares de pessoas, a organizar burocracias complexas e a estabelecer amplos impérios. Na Suméria, esses reinos eram administrados em nome dos deuses por sacerdotes-reis humanos. No vizinho vale do Nilo deu-se um passo à frente, com a fusão do sacerdote-rei com o deus e a criação de uma deidade viva — o faraó.
Os egípcios consideravam que o faraó era efetivamente deus, e não apenas uma subdivindade. O Egito inteiro pertencia a esse deus, e todas as pessoas tinham de obedecer a suas ordens e pagar os impostos que ele cobrava. Assim como nos templos sumérios, também no Egito faraônico o deus não conduzia sozinho os negócios do império. Alguns faraós governaram com mão de ferro, enquanto outros passavam seus dias em banquetes e festas, mas em ambos os casos o trabalho prático de administrar o Egito cabia aos milhares de funcionários instruídos. Assim como qualquer outro humano, um faraó tinha um corpo biológico com necessidades biológicas, desejos e emoções. Mas o faraó biológico tinha pouca importância. O governante real do vale do Nilo era um faraó imaginário que existia nas histórias que milhões de egípcios contavam uns aos outros.
Enquanto os faraós ficavam na capital, Mênfis, comendo uvas em seu palácio e se deliciando com suas mulheres e amantes, os funcionários do faraó cruzavam o reino em todas as direções, do Mediterrâneo ao deserto da Núbia. Os burocratas calculavam os impostos que cada aldeia tinha de pagar e os registravam em longos rolos de papiro, os quais eram enviados a Mênfis. Quando chegava da capital uma ordem escrita de que se recrutassem soldados de um exército de trabalhadores para algum projeto de construção, os funcionários reuniam o número de homens requerido. Computavam quanto trigo os celeiros reais continham; quantos dias de trabalho seriam necessários para limpar canais e reservatórios; e quantos patos e porcos teriam de enviar a Mênfis para que o harém do faraó tivesse um bom jantar. Mesmo quando a deidade viva morria e seu corpo era embalsamado e levado numa extravagante procissão funerária até a necrópole real fora de Mênfis, os burocratas seguiam com suas atividades. Os funcionários continuavam a escrever em rolos de papiro, a coletar impostos, a dar ordens, lubrificando as engrenagens da máquina faraônica.

 
Marcas não são uma invenção moderna. Assim como Elvis Presley, o faraó também era mais uma marca do que um organismo vivo. Para milhões de seguidores, sua imagem representava muito mais do que sua realidade carnal, e eles continuavam a cultuá-lo muito depois de sua morte.

Se os deuses sumérios nos fazem lembrar de certas marcas corporativas da atualidade, o deus vivo que era o faraó pode ser comparado a marcas pessoais modernas, como Elvis Presley, Madonna ou Justin Bieber. Exatamente como um faraó, Elvis também tinha um corpo biológico completo, com necessidades biológicas, desejos e emoções. Elvis comia e bebia e dormia. Mas também era muito mais do que um corpo biológico. Como o faraó, Elvis era uma história, um mito, uma marca — e a marca era muito mais importante do que o corpo biológico. Durante a vida de Elvis, a marca ganhou milhões de dólares com a venda de discos, entradas, pôsteres e direitos, porém apenas uma pequena fração do trabalho necessário para isso foi realizada pessoalmente por Elvis. O trabalho pesado ficou a cargo de um pequeno exército de agentes, advogados, produtores e secretários. Consequentemente, quando o Elvis biológico morreu, os negócios da marca continuaram. Mesmo hoje em dia os fãs ainda compram pôsteres e álbuns do rei; estações de rádio seguem pagando direitos; e mais de meio milhão de peregrinos fluem todo ano para Graceland, a necrópole do rei em Memphis, Tennessee.
Yuval Noah Harari, in Homo Deus: Uma breve história do amanhã

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