Uma
terceira armadilha é pensar que a sabedoria tem residência
exclusiva no universo da escrita. É olhar a oralidade como um sinal
de menoridade. Com alguma condescendência, é usual pensar a
oralidade como patrimônio tradicional que deve ser preservado. O
culto de uma sabedoria livresca pode contrariar o propósito da
cultura e do livro que é o da descoberta da alteridade.
Certa
vez, um menino de rua em Maputo veio-me devolver um livro que ele
vira nas mãos de uma estudante à saída da escola. Notando a minha
fotografia na capa, esse menino acreditou que a estudante me tinha
roubado o livro.
Me
comoveu esse menino que atravessou a cidade para me devolver algo
que, no entender dele, me pertencia. Mas o que ele me entregava era
mais do que um objeto. Ele me entregava a inquietação profunda, a
interrogação: a quem pertence realmente um livro? Ele é nosso
porque o adquirimos, sim. O livro deve ser objeto e mercadoria para
chegar às nossas mãos. Mas só somos donos desse objeto quando ele
deixa de ser objeto e deixa de ser mercadoria. O livro só cumpre o
seu destino quando transitamos de leitores para produtores do texto,
quando tomamos posse dele como seus co-autores.
A
mais importante linha divisória em Moçambique não é tanto a
fronteira que separa analfabetos e alfabetizados, mas a fronteira
entre a lógica da escrita e a lógica da oralidade. A absoluta
maioria dos 20 milhões de moçambicanos vive e funciona num tipo de
racionalidade que tem pouco a ver com o universo urbano. Mas em
Moçambique, como no resto do mundo, a lógica da escrita instalou-se
com absoluta hegemonia. Nesses casos, pressupostos filosóficos do
mundo rural correm o risco de ser excluídos e extintos. Algumas das
ideias que venho defendendo nesta comunicação estão claramente
presentes na epistemologia da ruralidade africana.
A
concepção relacional da identidade, inscrita no provérbio: “Eu
sou os outros”; a ideia de que a felicidade se alcança não por
domínio mas por harmonias; a ideia de um tempo circular; o
sentimento de gerir o mundo em diálogo com os mortos: todos estes
conceitos constam da rica cosmogonia rural africana.
É
evidente que não se pode romantizar esse mundo não urbanizado. Ele
necessita de enfrentar o confronto com a modernidade. O desafio seria
alfabetizar sem que a riqueza da oralidade fosse eliminada. O desafio
seria ensinar a escrita a conversar com a oralidade.
Mia
Couto, in E se Obama fosse africano
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