“Oh,
ela sabia cada vez mais.”
Sentar-se,
concentrada, contar até um número, por exemplo dez, ou doze, e
esperar agudamente um acontecimento importante, era seu exercício
mais impreciso, mais despido de maldade, porque ela não escolhia o
que ia acontecer, só fazia acontecer.
Havia
outros, menos intensos: gritar “aaaa” de olhos fechados e,
abrindo-os, esperar que tudo houvesse desaparecido; colocar a mão
molhada na testa e acompanhar aquele sangue mais frio passeando no
seu corpo; imóvel e muda, obrigar a fruteira de cristal brilhante a
estilhaçar-se no chão com a força do pensamento; passar sem comer
um dia inteiro para preocupar a mãe e ouvir deliciada: “Ana Lúcia,
você me mata!”
Entretanto,
era o esperar que algo importante acontecesse quando contasse até
doze ou dez que lhe dava aquele segundo de vida intenso do qual ela
saía sempre um pouco mais velha, e apressava a sua respiração,
como um cansaço ou um beijo de Guilherme em Nilsa. Horas depois, ou
nos dias seguintes, quando ouvia as pessoas grandes conversarem
segredos ou comentarem graves um fato recente, dizia-se, plena de
poder, ela mesma perplexa ante suas possibilidades: “Fui eu. Fui eu
que fiz.”
Achava
péssimo ir à escola, a professora era horrível. As coisas de que
mais gostava: pensar sem ninguém perto porque aí podia ir avançando
até se perder, brincar de santa, dormir, comer doce. Bom mesmo era
fazer nada, nem pensar, mas isso só às vezes conseguia, e era
impossível gozar o momento, sempre passado. Pois quando o sentia,
ele já acabara: ela começara a pensar. Ter aquilo na mesma hora
seria morrer? — perturbava-se ela com o pensamento, cada vez
sabendo mais.
Sim,
cada vez sabendo mais. Sempre sentira esse mistério: não ter pai.
Ela, que podia tanta coisa, afinava-se embaraçada de não conseguir
dizer “papai” do modo de Tita ou Nina. Era a única coisa que
faziam melhor do que ela, dizer “papai”. A diferença talvez só
ela percebesse, sutil. Sentia que pai era uma coisa que se tem
sempre, como mãe, ou roupas. Tita e Nina sabiam que aquela era uma
vantagem:
— Quede
seu pai, Ana Lúcia?
— Está
viajando.
Disseram-lhe
isso, já tinha escutado ou inventara? Ah, cada vez sabia mais,
sempre mais.
Guilherme
e Nilsa não se beijavam perto da mãe. Se ela chegava, as mãos
ficavam quietas nas mãos, a respiração ficava mansinha e não
havia mais nada interessante para olhar da janela do quarto. Beijar
devia ser proibido. Ou pecado. (Sabia mais, sempre mais.)
— Ana
Lúcia, seu pai ainda está viajando?
— Está.
— Mentirosa!
Sua mãe é desquitada.
Ficou
impotente diante da palavra desconhecida. Uma coisa nova, ainda não
se podia saber de que lado olhar para possuí-la toda. Desquitada.
Desquitada. Jamais perguntaria a Tita, era uma alegria que não lhe
daria. Ficou uns instantes sem saber como sair ilesa dessa armadilha.
Tita corada e brilhante de prazer na sua frente. — E o que é que
tem isso?
Tita
desmontou como um quebra-cabeça, Ana Lúcia balançara o tabuleiro.
Jamais teria medo de Tita, ela sempre dependia demais das coisas fora
dela, de um gesto, de uma palavra como desquitada ou parto.
Desquitada. Passou dias tentando solucionar sozinha. Seria uma coisa
como burra, feia? Não, não parecia. Flor? Flor parecia, mas não
explicava nada: orquídeas, rosas, sempre-vivas, desquitadas...
Parecia. “Mentirosa! Sua mãe é desquitada.” Tita dissera como
quem diz o quê? o quê? o quê? sem-vergonha. Sim!, como quem diz
sem-vergonha: olhando de frente e esperando um tapa.
Nesses
dias amou a mãe com muita força, amou-a até sentir lágrimas,
defendendo-a contra a palavra que poderia feri-la: desquitada,
sem-vergonha. Pensava a palavra de leve, com receio de ferir a mãe.
Experimentava, baixinho, torná-la mais suave, molhando-a de lágrimas
e amor: desquitadinha, sem-vergonhinha. Mas a palavra sempre agredia,
sempre feria. Sentada no chão, picando retalhinhos de pano com a
tesoura, amava a mãe intensamente, enquanto ela costurava rápida,
bonita mesmo, com aqueles alfinetes na boca. Chegava alguém para
provar vestidos, a mãe mandava-a sair. Era feio ver gente grande
mudar de roupa, a mãe dizia. Saía contrariada por deixá-la exposta
à palavra, em perigo. Abria-se a porta, ela entrava de novo, amando,
amando.
Estava
cansada dessa obrigação e só por isso duvidou de si, subitamente
um dia ao tomar leite para dormir: desquitada podia não ser como
sem-vergonha! Podia até ser pior, e quem sabe podia ser melhor.
Respirando fundo e observando-se, ela seguia pronta para novas
descobertas. Refugiou-se no sono.
No
dia seguinte recomeçou. Mais uma vez preocupava-se com a palavra,
agora não nova, mas mistério, sombra. Não se arriscava a dar um
palpite, havia o perigo de outro engano.
A
professora feia! pergunta no fim da manhã, recolhendo os cadernos,
se alguém tem alguma dúvida. Ana Lúcia acende-se emocionada. Por
que não a professora? Talvez ela fosse boa, talvez dissesse logo o
que é desquitada, talvez dissesse na mesma hora, sem muitas
perguntas como por que você quer saber uma coisa dessas. Levanta-se
tímida, insegura. Já de pé, desiste, e não sabe se senta ou
chora.
— O
que é, Ana Lúcia?
A
voz da professora, mansa, mas não ajudando. Não pergunto, não
pergunto — teima Ana Lúcia, ganhando tempo.
— O
que é? — a voz insiste.
As
meninas riem, insuportáveis. Helenice e seus dentes enormes
impossibilitando tudo. Ana Lúcia sente que vai chorar. Estar perto
da mãe é o que mais deseja.
— Sente-se
— ordena a professora irritada.
A
máquina de costura avançava decidida sobre o pano. Que bonita que a
mãe era, com os alfinetes na boca. Gostava de olhá-la calada,
estudando seus gestos, enquanto recortava retalhos de pano com a
tesoura. Interrompia às vezes seu trabalho, era quando a mãe
precisava da tesoura. Admirava o jeito decidido da mãe ao cortar
pano, não hesitava nunca, nem errava. A mãe sabia tanto! Tita
chamava-a de ( ) como quem diz ( ). Tentava não pensar as palavras,
mas sabia que na mesma hora da tentativa tinha-as pensado. Oh, tudo
era tão difícil. A mãe saberia o que ela queria perguntar-lhe
intensamente agora quase com fome depressa depressa antes de morrer,
tanto que não se conteve e
— Mamãe,
o que é desquitada? — atirou rápida com uma voz sem timbre.
Tudo
ficou suspenso, se alguém gritasse o mundo acabava ou Deus aparecia
— sentia Ana Lúcia. Era muito forte aquele instante, forte demais
para uma menina, a mãe parada com a tesoura no ar, tudo sem solução
podendo desabar a qualquer pensamento, a máquina avançando
desgovernada sobre o vestido de seda brilhante espalhando luz luz
luz.
A
mãe reconstruiu o mundo com uma voz maravilhosa e um riso: — Eu
precisava mesmo explicar para você a situação. Mas você é tão
pequena!
Olhou
a filha com carinho, procurando o jeito mais hábil. Pouco mais de
sete anos, o que poderia entrar naquela cabecinha?
— Desquitada
é quando o marido vai embora e a mãe fica cuidando dos filhos.
Pronto,
estou livre — sentiu Ana Lúcia. Desquitada, desquitada, desquitada
— repetia sem medo. Sentia-se completa e nova. Alegrou-se por não
precisar amar a mãe com aquela força de antes. Sendo apenas uma
menina poderia cansar-se e então o que seria da mãe? Bom, que
desquitada não fosse um insulto. Bom mesmo. Deixava-a livre para
pensar e não pensar, coisa tão difícil que
— Marido
é o pai? — ela quis confirmar, conquistando áreas que as outras
crianças tinham naturalmente. A mãe sorriu e confirmou. Tita sabia
dizer “papai” porque a mãe não era desquitada — ia Ana Lúcia
aprendendo, descobrindo. Havia muita coisa em que pensar naquela
conversa. Por exemplo: o que ela chama de marido é o que eu chamo de
pai. Essa é uma diferença entre mãe e filha. Ela sabia cada vez
mais.
Ivan
Ângelo, in Os cem melhores contos brasileiros do século
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