terça-feira, 16 de abril de 2019

O sertão é do tamanho do mundo

Demos no Rio, passamos. E, aí, a saudade de Diadorim voltou em mim, depois de tanto tempo, me custando seiscentos já andava, acoroçoado, de afogo de chegar, chegar, e perto estar. Cavalo que ama o dono, até respira do mesmo jeito. Bela é a lua, lualã, que torna a se sair das nuvens, mais redondada recortada. Viemos pelo Urucúia. Rio meu de amor é o Urucúia. O chapadão ― onde tanto boi berra. Daí, os gerais, com o capim verdeado. Ali é que vaqueiro brama, com suas boiadas espatifadas. Ar que dá açôite de movimento, o tempo-das-águas de chegada, trovoada trovoando. Vaqueiros todos vaquejando. O gado esbravaçava. A mal que as notícias referiam demais a cambada dos Judas, aumentável, a corja! ― A tantos quantos? ― eu pondo meu perguntar. ― Os muitos! Uma monarquia deles... ― os vaqueiros respondendo.
Mas Medeiro Vaz não se achava, os nossos, deles ninguém não sabia bem. Tocamos, fim que o mundo tivesse. Só deerrávamos. Assim como o senhor, que quer tirar é instantâneo das coisas, aproximar a natureza. Estou entendido. Esbarramos num varjeado, esconso lugar, por entre o da-Garapa e o da-Jibóia, ali tem três lagoas numa, com quatro cores: se diz que a água é venenosa. E isso de que me serve? Agua, águas. O senhor verá um ribeirão, que verte no Canabrava ― o que verte no Taboca, que verte no Rio Preto, o primeiro Preto do Rio Paracatú ― pois a daquele é sal só, vige salgada grossa, azula muito: quem conhece fala que é a do mar, descritamente; nem boi não gosta, não traga, eh não. E tanta explicação dou, porque muito ribeirão e vereda, nos contornados por aí, redobra nome. Quando um ainda não aprendeu, se atrapalha, faz raiva. Só Preto, já molhei mão nuns dez. Verde, uns dez. Do Pacarí, uns cinco. Da Ponte, muitos. Do Boi, ou da Vaca, também. E uns sete por nome de Formoso. São Pedro, Tamboril, Santa Catarina, uma porção. O sertão é do tamanho do mundo.
Agora, por aqui, o senhor já viu! Rio é só o São Francisco, o Rio do Chico. O resto pequeno é vereda. E algum ribeirão. E agora me lembro! no Ribeirão Entre-Ribeiros, o senhor vá ver a fazenda velha, onde tinha um cómodo quase do tamanho da casa, por debaixo dela, socavado no antro do chão ― lá judiaram com escravos e pessoas, até aos pouquinhos matar... Mas, para não mentir, lhe digo! eu nisso não acredito. Reconditório de se ocultar ouro, tesouro e armas, munição, ou dinheiro falso moedado, isto sim. O senhor deve de ficar prevenido! esse povo diverte por demais com a baboseira, dum traque de jumento formam tufão de ventania. Por gosto de rebuliço. Querem-porque-querem inventar maravilhas glorionhas, depois eles mesmos acabam temendo e crendo. Parece que todo o mundo carece disso. Eu acho, que.
Assim, olhe! tem um marimbú ― um brejo matador, no Riacho Ciz ― lá se afundou uma boiada quase inteira, que apodreceu; em noites, depois, deu para se ver, deitado a fora, se deslambendo em vento, do cafôfo, e perseguindo tudo, um milhão de lavareda azul, de jãdelãfo, fogo-fá. Gente que não sabia, avistaram, e endoideceram de correr fuga. Pois essa estória foi espalhada por toda a parte, viajou mais, se duvidar, do que eu ou o senhor, falavam que era sinal de castigo, que o mundo ia se acabar naquele ponto, causa de, em épocas, terem castrado um padre, ali perto umas vinte léguas, por via do padre não ter consentido de casar um filho com sua própria mãe. A que, até, cantigas rimaram! do Fogo-Azul-do-Fim-do-Mundo. Hê, hê?...
Agora, a forca, eu vi ― forca moderna, esquadriada, arvorada bem erguida no elevado, em madeira de boa lei, parda! sucupira. Ela foi num morrote, depois do São Simão do Bá, perto da banda da mão-direita do Pripitinga. A estúrdia forca de enforcar, construída aprovada ali particularmente, porque não tinham recurso de cadeia, e pajear criminoso por viagens era dificultoso, tirava as pessoas de seus serviços. Aí, então, usavam. As vezes, da redondeza, vinham até trazendo o condenado, a cavalo, para a forca, pública. Só que um pobre veio morar próximo, quase debaixo dela, cobrava sua esmola, em cada útil caso, dando seguida cavava a cova e enterrava o corpo, com cruz. No mais nada.
Guimarães Rosa, in Grande sertão: veredas

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