Nossa
vizinha raramente saía de casa; quando saía, era um acontecimento
na Joaquim Nabuco, a avenida da nossa infância e juventude.
Parávamos de jogar bolinhas de gude e até de empinar papagaio,
desatentos às tranças no ar e atentos às tranças da mulher, que
seguíamos com os olhos e, às vezes, com passos furtivos.
O
nome dela era um convite ao sonho: Sálvia Belamar. E seu tipo físico
parecia uma dissidência antropológica da nossa imensa tribo morena.
Da minha turma de amigos, só Jason Reilly — filho de um irlandês
com uma cabocla — era aloirado. Sálvia era ruiva e alta; o rosto e
os braços brancos pareciam desprezar o sol do equador. Além de
reclusa, era solitária. Mas sua solidão diuturna rebelava-se uma
vez por semana. Não sei como ela vivia, nem de que vivia.
Do
balcão do nosso sobrado era possível vê-la à noite, na sala sem
cortina, vestida com um penhoar vermelho, jantando ou lendo um livro.
Aprendi a palavra “penhoar” com a minha tia Tâmara, que
costurava roupas femininas; enquanto costurava, ia desfiando a vida
dos vizinhos. Mas tia Tâmara não sabia nada de Sálvia, cuja vida
era um livro misterioso no palco escancarado da província. Não sei
quantas páginas tinha esse livro, mas pude ler um ou dois capítulos.
Vamos aos capítulos, que são breves, e não totalmente tristes. Em
todo caso, não fazem mal a ninguém. Afinal, amanhã é sábado.
E
que coincidência: justamente aos sábados começam e terminam um dos
capítulos amorosos do livro de Sálvia. Aos sábados, um homem com
uniforme de aviador — comandante ou copiloto ou engenheiro de bordo
— entrava às oito da noite no bangalô. A porta não estava
trancada. Eu, Minotauro e Jason Reilly ficávamos no balcão da minha
casa, espreitando o encontro do casal.
Jason
era um varapau. Para ele, o horizonte era mais vasto. Em certas
circunstâncias, um voyeur alto leva vantagem; e o diabo é que Jason
era discreto demais. O silêncio e a respiração ofegante desse
filho de europeu eram intraduzíveis. Vez ou outra ele era
contaminado por nossa indiscrição inata e nos cochichava uma cena
que eu e o Minotauro só podíamos imaginar. Mesmo assim, quando o
aviador e Sálvia namoravam, víamos gestos de carícias que
desconhecíamos ou de que nem suspeitávamos; víamos o aviador tirar
o paletó preto e jantar com a mulher. Depois os dois dançavam ao
ritmo de uma música inaudível, como um par enamorado de um filme
mudo, mas colorido. Quando o par saía da sala, o filme terminava com
um blecaute.
Lembro
que essas sessões noturnas de voyeurismo duraram poucos meses. Nunca
vi o aviador à luz do dia; não sei a que horas ele ia embora do
bangalô, nem se ia ao hotel ou ao aeroporto.
Minha
tia Tâmara contou ao irmão que eu e meus amigos abelhudávamos a
vida da vizinha. E tio Adam, mais abelhudo do que todos nós, disse:
“Conheci Sálvia nas alturas”.
“Nas
alturas?”
“A
bordo do Constellation, numa viagem do Rio para Manaus”, ele
disse. “Tive a sorte de sentar ao lado dela. Como o voo era
demorado e tedioso, puxei conversa com a moça.”
Tio
Adam não revelou nada dessa conversa, mas disse que, antes da
aterrissagem em Manaus, a passageira levantou para ir ao toalete e
não voltou mais.
“Ela
sumiu”, disse Adam, “e minha viagem terminou aí.”
“Ela
estava no banheiro quando o avião pousou?”
“Na
cabine de comando, sentada numa cadeirinha atrás do comandante”,
esclareceu meu tio. “A continuação dessa história tu já
conheces.”
Mas
foi o próprio Adam que me contou o fim.
Ao
anoitecer de um sábado, um de seus amigos da aeronáutica telefonou
da base aérea para lhe dizer que o Constellation havia sumido
do radar quando se aproximava do aeroporto de Manaus. Meu tio
desligou o telefone e ficou olhando sua irmã. Com três palavras ele
nos deu a notícia terrível e entrou no seu quarto, que era também
o meu.
Naquele
sábado, Jason e o Minotauro chegaram antes das oito; Sálvia arrumou
a mesa para o jantar e esperou. Às oito e meia saiu da sala e voltou
uns minutos depois. Jason disse que ela chorou sentada no chão;
ficou impressionado por tê-la visto beijar, morder e cheirar um
quepe preto.
No
sábado seguinte nós a vimos jantar. Enquanto comia, olhava para o
fantasma do aviador, conversava com ele, servia-lhe comida. Depois
ela dançou sozinha, abraçada ao quepe.
Meus
dois amigos não suportaram rever esse quadro mórbido. E eu, sem a
cumplicidade deles, capitulei.
Anos
depois, quando eu já morava em São Paulo, recebi um convite para
participar da festa do casamento de tio Adam com Sálvia Belamar. O
voyeur, agora sobrinho da vizinha misteriosa, não era mais um
menino.
Viveram
juntos trinta e um anos e sete meses. Morreram na mesma semana,
primeiro ela, e dois dias depois, meu tio.
Milton
Hatoum, in Um solitário à espreita
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