Nhô
Augusto não tirou os olhos, até que desaparecessem. E depois se
esparramou em si, pensando forte. Aqueles, sim, que estavam no bom,
porque não tinham de pensar em coisa nenhuma de salvação de alma,
e podiam andar no mundo, de cabeça em-pé... Só ele, Nhô Augusto,
era quem estava de todo desonrado, porque, mesmo lá, na sua terra,
se alguém se lembrava ainda do seu nome, havia de ser para
arrastá-lo pela rua-da-amargura...
O
convite de seu Joãozinho Bem-Bem, isso, tinha de dizer, é que era
cachaça em copo grande! Ah, que vontade de aceitar e ir também...
E
o oferecimento? Era só falar! Era só bulir com a boca, que seu
Joãozinho Bem-Bem, e o Tim, e o Juruminho, e o Epifânio — e todos
— rebentavam com o Major Consilva, com o Ovídio, com a mulher, com
todo-o-mundo que tivesse tido mão ou fala na sua desgarração.
Eh,
mundo velho de bambaruê e bambaruá! ... Eh, ferragem!...
E
Nhô Augusto cuspiu e riu, cerrando os dentes.
Mas,
qual, aí era que se perdia, mesmo, que Deus o castigava com mão
mais dura...
E
só então foi que ele soube de que jeito estava pegado à sua
penitência, e entendeu que essa história de se navegar com
religião, e de querer tirar sua alma da boca do demônio, era a
mesma coisa que entrar num brejão, que, para a frente, para trás e
para os lados, é sempre dificultoso e atola sempre mais.
Recorreu
ao rompante:
— Agora
que eu principiei e já andei um caminho tão grande, ninguém não
me faz virar e nem andar de-fasto!
E,
à noite, tomou um trago sem ser por regra, o que foi bem bom, porque
ele já viajou, do acordado para o sono, montado num sonho bonito, no
qual havia um Deus valentão, o mais solerte de todos os valentões,
assim parecido com seu Joãozinho Bem-Bem, e que o mandava ir brigar,
só para lhe experimentar a força, pois que ficava lá em-cima, sem
descuido, garantindo tudo. E, assim, dormiram as coisas.
Deu
uma invernada brava, mas para Nhô Augusto não foi nada: passava os
dias debaixo da chuva, limpando o terreiro, sem precisão nenhuma.
Depois, entestou de pôr abaixo o mato, que conduzia até à beira do
córrego os angicos de casca encoscorada e os jacarandás anosos, da
primeira geração. E era cada machadada bruta, com ele golpeando os
troncos, e gritando. E os pretos, que se estavam dando muito bem com
o sistema, traziam-lhe de vez em quando um golinho, para que ele não
apanhasse resfriado; e, como para chegarem até lá também se
molhavam, tomavam cuidado de se defender, igualmente, contra os seus
resfriados possíveis.
E
ainda outras coisas tinham acontecido, e a primeira delas era que,
agora, Nhô Augusto sentia saudades de mulheres. E a força da vida
nele latejava, em ondas largas, numa tensão confortante, que era um
regresso e um ressurgimento. Assim, sim, que era bom fazer
penitência, com a tentação estimulando, com o rasto no terreno
conquistado, com o perigo e tudo. Nem pensou mais em morte, nem em ir
para o céu; e mesmo a lembrança de sua desdita e reveses parou de
atormentá-lo, como a fome depois de um almoço cheio. Bastava-lhe
rezar e aguentar firme, com o diabo ali perto, subjugado e apanhando
de rijo, que era um prazer. E somente por hábito, quase, era que ia
repetindo:
— Cada
um tem a sua hora, e há-de chegar a minha vez!
Tanto
assim, que nem escolhia, para dizer isso, as horas certas, as três
horas fortes do dia, em que os anjos escutam e dizem amém…
Mas,
afinal, as chuvas cessaram, e deu uma manhã em que Nhô Augusto saiu
para o terreiro e desconheceu o mundo: um sol, talqualzinho a bola de
enxofre do fundo do pote, marinhava céu acima, num azul de água sem
praias, com luz jogada de um para o outro lado, e um desperdício de
verdes cá embaixo — a manhã mais bonita que ele já pudera ver.
Estava
capinando, na beira do rego.
De
repente, na altura, a manhã gargalhou: um bando de maitacas passava,
tinindo guizos, partindo vidros, estralejando de rir. E outro. Mais
outro. E ainda outro, mais baixo, com as maitacas verdinhas,
grulhantes, gralhantes, incapazes de acertarem as vozes na disciplina
de um coro.
Depois,
um grupo verde-azulado, mais sóbrio de gritos e em fileiras mais
juntas.
— Uai!
Até as maracanãs!
E
mais maitacas. E outra vez as maracanãs fanhosas. E não se acabavam
mais. Quase sem folga: era uma revoada estrilando bem por cima da
gente, e outra brotando ao norte, como pontozinho preto, e outra —
grão de verdura — se sumindo no sul.
— Levou
o diabo, que eu nunca pensei que tinha tantos!
E
agora os periquitos, os periquitinhos de guinchos timpânicos, uma
esquadrilha sobrevoando outra... E mesmo, de vez em quando,
discutindo, brigando, um casal de papagaios ciumentos. Todos tinham
muita pressa: os únicos que interromperam, por momentos, a viagem,
foram os alegres tuins, os minúsculos tuins de cabecinhas amarelas,
que não levam nada a sério, e que choveram nos pés de mamão e
fizeram recreio, aos pares, sem sustar o alarido —
rrrl-rrril!rrrl-rrril!...
Mas
o que não se interrompia era o trânsito das gárrulas maitacas. Um
bando grazinava alto, risonho, para o que ia na frente: — Me
espera!... Me espera!... — E o grito tremia e ficava nos ares, para
o outro escalão, que avançava lá atrás.
— Virgem!
Estão todas assanhadas, pensando que já tem milho nas roças...
Mas, também, como é que podia haver um de-manhã mesmo bonito, sem
as maitacas?!...
O
sol ia subindo, por cima do vôo verde das aves itinerantes. Do outro
lado da cerca, passou uma rapariga. Bonita! Todas as mulheres eram
bonitas. Todo anjo do céu devia de ser mulher. E Nhô Augusto pegou
a cantar a cantiga, muito velha, do capiau exilado: “Eu quero ver a
moreninha tabaroa, arregaçada, enchendo o pote na lagoa...
Cantou,
longo tempo. Até que todas as asas saíssem do céu.
— Não
passam mais... Ô papagaiada vagabunda! Já devem de estar longe
daqui...
Longe,
onde?
“Como
corisca, como ronca a trovoada,
no
meu sertão, na minha terra abençoada...”
Longe,
onde?
“Quero
ir namorar com as pequenas,
com
as morenas do Norte de Minas...”.
Mas,
ali mesmo, no sertão do Norte, Nhô Augusto estava. Longe onde,
então?
Guimarães
Rosa, in A hora e vez de Augusto Matraga
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