terça-feira, 29 de janeiro de 2019

A linha de pobreza biológica

Comecemos com a fome, que há milhares de anos é o pior inimigo da humanidade. Até recentemente, a maioria dos seres humanos vivia no limite mesmo da linha da pobreza biológica, abaixo da qual as pessoas sucumbem à desnutrição e à fome. Um pequeno erro ou um pouco de azar poderiam facilmente constituir-se em sentença de morte para uma família, ou uma aldeia toda. Se chuvas pesadas destruíssem sua colheita de trigo, ou se ladrões levassem seu rebanho de cabras, você e seus entes queridos poderiam passar fome até morrer. Infortúnio ou estupidez em nível coletivos resultavam em fome massiva. Quando uma seca rigorosa atingia o Egito antigo ou a Índia medieval, não raro 5% ou 10% da população perecia. As provisões tornavam-se escassas; o transporte era lento e dispendioso para permitir a importação de comida; e os governos eram fracos demais para salvar a situação.
Abra um livro de história e provavelmente você vai deparar com relatos terríveis de populações famintas, enlouquecidas pela fome. Em abril de 1694, um funcionário do governo francês na cidade de Beauvais descreveu o impacto da fome e dos cada vez mais elevados preços da comida: o distrito todo estava tomado por “um número infinito de pobres almas, debilitadas pela fome e pela miséria, cuja morte era provocada pela carência total, porque, não tendo trabalho ou ocupação, não dispunham de dinheiro para comprar pão. Buscando prolongar um pouco suas vidas e de algum modo matar a fome, esses desvalidos começaram a comer coisas tão impuras como gatos e carne de cavalos esfolados e atirados em montes de esterco. [Outros consumiam] o sangue que escorre quando vacas e bois são abatidos, e os restos que os cozinheiros jogam nas ruas. Outros pobres miseráveis comiam urtigas e ervas, ou raízes e grama, as quais ferviam na água”.
Cenas semelhantes ocorriam por toda a França. Temperaturas ruins haviam arruinado as colheitas em todo o reino nos dois anos anteriores, de modo que, na primavera de 1694, os celeiros estavam completamente vazios. Os ricos cobravam preços exorbitantes por qualquer alimento que conseguissem acumular, e os pobres morriam em massa. Aproximadamente 2,8 milhões de franceses — 15% da população — morreram de fome entre 1692 e 1694, enquanto o Rei Sol, Luís XIV, flertava com sua amante em Versalhes. No ano seguinte, 1695, a fome assolou a Estônia e matou um quinto da população. Em 1696 foi a vez da Finlândia, onde entre um quarto e um terço da população morreu. A Escócia sofreu sob uma fome rigorosa entre 1695 e 1698, e alguns distritos perderam até 20% de seus habitantes.
A maioria dos leitores provavelmente sabe qual é a sensação que se tem quando se deixa de almoçar, ou quando se jejua em alguma data religiosa, ou quando se vive em alguns dias o choque de comer apenas vegetais, como parte de uma nova e maravilhosa dieta. Mas qual é a sensação de não comer durante dias, sem ter ideia de onde achar a próxima migalha de comida? De modo geral, hoje em dia as pessoas não experimentam mais esse tormento excruciante. Nossos antepassados, pobres deles, o vivenciaram bem demais. Quando gritavam a Deus “Salvai-nos da fome!”, era exatamente isso que tinham em mente.
Durante os últimos cem anos, desenvolvimentos tecnológicos, econômicos e políticos criaram uma rede de segurança cada vez mais robusta, que separa a humanidade da linha biológica da pobreza. Ondas maciças de fome ainda atingem algumas regiões de tempos em tempos, mas são exceções, quase sempre provocadas por políticas humanas e não por catástrofes naturais. Não ocorrem mais surtos de fome por causas naturais; há apenas fomes políticas. Se pessoas na Síria, no Sudão ou na Somália morrem de fome, é porque alguns políticos querem que elas morram.
Na maioria das regiões do planeta, é improvável que uma pessoa que perdeu seu emprego e todas as suas posses morra de fome. Sistemas de seguro privados, agências governamentais e ONG s internacionais podem não resgatá-la da pobreza, mas a proverão de um número de calorias diárias suficiente para que sobreviva. Coletivamente, a rede global de comércio transforma secas e inundações em oportunidades de negócios e possibilita superar a escassez de alimentos de modo rápido e barato. Mesmo quando guerras, terremotos ou tsunamis devastam países inteiros, esforços internacionais para evitar a fome são geralmente bem-sucedidos. Embora centenas de milhões de pessoas ainda passem fome quase todos os dias, na maioria dos países o número de mortes por inanição é muito pequeno.
A pobreza certamente causa muitos outros problemas de saúde, e a má nutrição reduz a expectativa de vida até mesmo nos países mais ricos. Na França, por exemplo, 6 milhões de pessoas (cerca de 10% da população) padecem de insegurança nutricional. Acordam cada manhã sem saber se terão algo para comer no almoço; frequentemente vão dormir com fome; e as refeições que conseguem obter são desequilibradas e pouco saudáveis — amido, açúcar e sal em excesso e, por outro lado, carência de proteínas e vitaminas. 3 No entanto, insegurança nutricional não é fome, e a França do início do século XXI não é a França de 1694. Até mesmo no pior dos cortiços em torno de Beauvais ou Paris, as pessoas não morrem porque não comeram durante semanas a fio.
A mesma transformação aconteceu em inúmeros outros países, mais notadamente na China. Durante milênios a fome assolou todos os governos chineses, do Imperador Amarelo aos comunistas vermelhos. Poucas décadas atrás, a China era exemplo de um país que enfrentava a escassez de alimentos. Dezenas de milhões de chineses morreram de fome durante o desastroso Grande Salto para a Frente, e especialistas previam que o problema só iria se agravar. Em 1974, realizou-se, em Roma, a primeira Conferência Mundial sobre Alimentação, e os delegados foram apresentados a cenários apocalípticos. A informação era de que não havia como a China alimentar sua população de 1 bilhão de pessoas e de que os países mais populosos do mundo estavam caminhando para a catástrofe. Na verdade, estavam na direção do maior milagre econômico na história. Desde 1974, centenas de milhões de chineses foram resgatados da pobreza, e, ainda que centenas de milhões mais sofram de privações e de subnutrição, pela primeira vez em seus registros históricos a China está livre da fome.
Na verdade, na maioria dos países, o hábito de comer demais tornou-se um problema muito pior que o da fome. Conta-se que, no século XVIII, Maria Antonieta aconselhou as massas famintas a que, se ficassem sem pão, comessem brioches. Os pobres hoje estão seguindo literalmente esse conselho. Enquanto os moradores ricos de Beverly Hills, nos Estados Unidos, comem salada de alface e tofu no vapor com quinoa, nos cortiços e guetos os pobres se empanturram com bolinhos recheados, salgadinhos artificiais, hambúrgueres e pizzas. Em 2014, mais de 2,1 bilhões de pessoas apresentavam excesso de peso em comparação com 850 milhões que sofriam de subnutrição. Prevê-se que metade da humanidade estará com excesso de peso em 2030. Em 2010, fome e subnutrição combinadas mataram cerca de 1 milhão de pessoas, enquanto a obesidade matou 3 milhões.
Yuval Noah Harari, in Homo Deus: uma breve história do amanhã

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