Arrecifes,
um recorte do mar verde e um pedaço do céu de Olinda. Essa era a
paisagem que se via do ateliê de José Cláudio da Silva. Quando o
artista abriu as outras janelas, tive a impressão de que o ateliê
ia flutuar no oceano.
Eu
tinha acabado de admirar cinco quadros a óleo que Zé Cláudio
pintara durante a viagem que ele e Paulo Vanzolini fizeram à
Amazônia. Desenhos, pinturas e histórias dessa expedição
amazônica constam num belíssimo livro [100 Telas, 60 dias um
diário de viagem — Amazonas, 1975]. Mas Zé Cláudio não
queria falar sobre essas pinturas, cuja beleza me fascinava. Me
ofereceu caju e cachaça e olhou para o oceano, que lançava cheiro
de sal na luminosidade do meio-dia. Depois ele começou a falar de
outra viagem, desta vez a Madri.
“Morava
na Espanha e naquela manhã eu passeava na Feira do Livro, perto do
Prado”, disse Zé Cláudio. “Parei num quiosque e comprei livros
de arte: Goya, Velázquez, El Greco… A vendedora pôs os livros
pesados numa sacola e, sem que eu lhe pedisse, pôs também um
pequeno volume, que não era um livro de arte. ‘Um presente da
nossa editora’, disse a moça. Não vi o livrinho, e quando cheguei
ao apartamento em La Latina, tocou o telefone. Era uma tia, com más
notícias: meu pai fora internado e não passava bem. Nessa mesma
noite consegui viajar para o Brasil; cheguei ao Recife no anoitecer
do dia seguinte e fui do aeroporto para o hospital. Meu pai tinha
sido operado e seu estado de saúde era delicado. Ainda estava sob
efeito da anestesia; em algum momento da noite ele acordou e me
reconheceu. Segurei a mão dele e beijei seu rosto. Depois meu pai me
perguntou, com uma voz fraca e perplexa, se eu não estava em Madri.
“A
pergunta parecia insensata, mas quando recordei que no dia anterior
eu caminhava em Madri e agora estava no quarto de um hospital em
Recife, pensei também no imponderável da vida e na velocidade com
que nos deslocamos. Imaginei um quadro que traduzisse essa
ubiquidade, essa quase onipresença de um viajante.
“Passei
a noite no hospital: uma noite maldormida, porque ainda estava
mareado pela diferença de fuso horário e surpreso com as diferenças
entre Madri e a minha cidade. Quando acordei, vi meu pai dormindo; na
conversa com o médico, soube que o paciente estava sob controle.
Disse ao médico e à enfermeira que ia deixar a bagagem em casa e
voltaria mais tarde.
“Entrei
nesta mesma casa, tomei banho, deitei na rede para dar um cochilo,
mas não consegui fechar os olhos. Quando subi para cá — este
mesmo ateliê —, contemplei uma paisagem semelhante à que estamos
vendo agora. Comecei a esboçar um desenho que seria uma pintura;
seria, porque nunca acabei de pintar esse quadro. Não sei dizer o
que me impediu de terminá-lo. A tela ia ficando mais espessa, com
camadas de cores de matizes diferentes, mas a pintura não se
resolvia. Ou não se resolvia dentro de mim. Faltava alguma verdade
na configuração plástica, na unidade formal… Mas o que é a
verdade na pintura, na arte? Essa tentativa durou meses e foi adiada,
talvez para sempre.”
“E
teu pai?”
“Esse
é o ponto”, disse Zé Cláudio. “O ponto final. Voltei ao
hospital no começo da tarde; quando entrei no quarto, fui avisado
que meu pai tinha acabado de entrar na UTI. A verdade é que não o
vi mais. Quer dizer, não o vi com vida. Tinha levado a sacola com os
livros de arte; enquanto esperava o boletim médico, vi reproduções
de pinturas e gravuras de Goya, depois pinturas de Velásquez. Por
curiosidade, fisguei no fundo da sacola o livrinho que a vendedora
tinha me dado de presente. E tudo aconteceu quase ao mesmo tempo. A
leitura e a voz. Li o título do livro: Coplas a la muerte de su
padre, de Jorge Manrique. Meus olhos arderam quando li os
primeiros versos. E logo depois, quando minhas mãos trêmulas ainda
seguravam o livro, a voz de uma mulher de branco deu a notícia mais
triste de minha vida.”
Milton
Hatoum, in Um solitário à espreita
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