Hoje
pela manhã — ainda não havia me levantado da cama — pus-me a
pensar em como vou usar a minha vida nos anos que me restam. É
normal que isso aconteça com todos os velhos. Quando os anos são
poucos, os dias se aceleram e o pensamento se põe a procurar, no
meio das brumas e das espumas, o que é essencial.
Tempo
curto é tempo crepuscular. E o crepúsculo é uma mistura de beleza
e tristeza. Albert Camus escreveu no seu Primeiros cadernos: “Céu
de trovoada em Agosto. Aragem escaldante. Nuvens negras. No entanto,
do lado do nascente, uma faixa azul, delicada, transparente. A sua
presença é uma tortura para os olhos e para a alma. Porque a beleza
é insuportável. Ela desespera-nos, eternidade de um minuto que
desejaríamos prolongar pelo tempo fora”.
Faz
muito tempo que mandei esculpir em madeira uma frase latina que tenho
agora pendurada na minha varanda: “Tempus fugit” — o tempo
foge.
Na
minha sonolência, lembrei-me de Hermann Hesse, escritor que marcou a
minha geração. Lembrei-me dele porque ele também se propôs a
mesma pergunta. Levantei-me, fui ao escritório e tirei da estante o
livro O jogo das contas de vidro e procurei nele as marcas que fiz
quando o li, muitos anos atrás.
O
personagem central do romance é Joseph Knecht, mestre supremo de
Castália. Castália era uma ordem monástica que se dedicava ao
cultivo e gozo da beleza, cujo ponto culminante era uma celebração
anual que tinha o nome de jogo das contas de vidro. Esse jogo se
inspirava na brincadeira musical denominada variações sobre um
tema. Brincar com a beleza. Knecht era o regente da beleza, magister
ludi, o mestre do jogo.
Mas
agora ele estava velho. As cores da vida estavam esmaecendo e a alma
se sentia dominada pela nostalgia da morte.
Havendo
atingido o ponto máximo da sua carreira, ele se viu repentinamente
invadido pelo desejo de deixar tudo e se dedicar a educar uma criança
“que ainda não tivesse sido deformada pela escola”. Decide-se
então a abandonar sua posição de magister ludi, deixa a ordem
monástica a que pertencia (como se o papa resolvesse,
repentinamente, tornar-se professor de roça...) e se torna tutor de
um menino.
Ele
então explica o seu gesto. “A melhor coisa que a minha posição
como Magister Ludi me deu”, ele disse, “foi a descoberta de que
fazer música e tocar Bach não são as únicas atividades felizes na
vida, e que ensinar e educar podem ser igualmente atividades que nos
trazem grande felicidade. Aos poucos descobri, além disso, que
ensinar me dá tanto mais prazer quanto mais jovens e não estragados
pela deseducação os alunos são. Isso fez com que, ao passar dos
anos, eu desejasse ser um professor numa escola primária...”
Meditando sobre essa condição, ele descobre um poeminha de Ruckert
que continha o resumo da sua sabedoria de velho: “Nossos dias são
preciosos mas com alegria os vemos passando se no seu lugar
encontramos uma coisa mais preciosa crescendo: uma planta rara e
exótica que traz alegria ao nosso coração jardineiro, uma criança
que estamos ensinando, um livrinho que estamos escrevendo...”.
Escrever
um livrinho (“livrinho” no diminutivo, coisa simples; os livros
grandes me assustam...).
Plantar
um jardim (nossa vocação suprema, jardineiros, cuidar da Terra).
Ensinar
uma criança...
Mas
essas, precisamente, são as vocações que me comovem. Livrinhos
para crianças, já escrevi muitos. Jardins, não sei quantos eu
plantei. Agora eu sinto que gostaria de ser um professor de crianças
ainda no curso primário. As crianças nos salvam do envelhecimento
triste. Recordo o que Bachelard disse sobre elas: “Na idade do
envelhecimento a lembrança da infância devolve-nos aos sentimentos
finos, a essa ‘saudade risonha’ das grandes atmosferas
baudelairianas. A infância não é uma coisa que morre em nós e
seca uma vez cumprido o seu ciclo. É o mais vivo dos tesouros e
continua a nos enriquecer sem que o saibamos”. Eu quero voltar às
crianças para me salvar...
Se
eu fosse seguir o caminho que Hesse escolheu para os últimos anos de
sua vida, isso é, se eu resolvesse usar o meu tempo para ensinar uma
criança, o que gostaria de ensinar? O que tenho para dar a um menino
ou menina? Por qual caminho eu os levaria a passear?
Rubem
Alves,
in
Pimentas: para
provocar um incêndio, não é preciso fogo
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