segunda-feira, 22 de outubro de 2018

O que Ensinar?

Hoje pela manhã — ainda não havia me levantado da cama — pus-me a pensar em como vou usar a minha vida nos anos que me restam. É normal que isso aconteça com todos os velhos. Quando os anos são poucos, os dias se aceleram e o pensamento se põe a procurar, no meio das brumas e das espumas, o que é essencial.
Tempo curto é tempo crepuscular. E o crepúsculo é uma mistura de beleza e tristeza. Albert Camus escreveu no seu Primeiros cadernos: “Céu de trovoada em Agosto. Aragem escaldante. Nuvens negras. No entanto, do lado do nascente, uma faixa azul, delicada, transparente. A sua presença é uma tortura para os olhos e para a alma. Porque a beleza é insuportável. Ela desespera-nos, eternidade de um minuto que desejaríamos prolongar pelo tempo fora”.
Faz muito tempo que mandei esculpir em madeira uma frase latina que tenho agora pendurada na minha varanda: “Tempus fugit” — o tempo foge.
Na minha sonolência, lembrei-me de Hermann Hesse, escritor que marcou a minha geração. Lembrei-me dele porque ele também se propôs a mesma pergunta. Levantei-me, fui ao escritório e tirei da estante o livro O jogo das contas de vidro e procurei nele as marcas que fiz quando o li, muitos anos atrás.
O personagem central do romance é Joseph Knecht, mestre supremo de Castália. Castália era uma ordem monástica que se dedicava ao cultivo e gozo da beleza, cujo ponto culminante era uma celebração anual que tinha o nome de jogo das contas de vidro. Esse jogo se inspirava na brincadeira musical denominada variações sobre um tema. Brincar com a beleza. Knecht era o regente da beleza, magister ludi, o mestre do jogo.
Mas agora ele estava velho. As cores da vida estavam esmaecendo e a alma se sentia dominada pela nostalgia da morte.
Havendo atingido o ponto máximo da sua carreira, ele se viu repentinamente invadido pelo desejo de deixar tudo e se dedicar a educar uma criança “que ainda não tivesse sido deformada pela escola”. Decide-se então a abandonar sua posição de magister ludi, deixa a ordem monástica a que pertencia (como se o papa resolvesse, repentinamente, tornar-se professor de roça...) e se torna tutor de um menino.
Ele então explica o seu gesto. “A melhor coisa que a minha posição como Magister Ludi me deu”, ele disse, “foi a descoberta de que fazer música e tocar Bach não são as únicas atividades felizes na vida, e que ensinar e educar podem ser igualmente atividades que nos trazem grande felicidade. Aos poucos descobri, além disso, que ensinar me dá tanto mais prazer quanto mais jovens e não estragados pela deseducação os alunos são. Isso fez com que, ao passar dos anos, eu desejasse ser um professor numa escola primária...” Meditando sobre essa condição, ele descobre um poeminha de Ruckert que continha o resumo da sua sabedoria de velho: “Nossos dias são preciosos mas com alegria os vemos passando se no seu lugar encontramos uma coisa mais preciosa crescendo: uma planta rara e exótica que traz alegria ao nosso coração jardineiro, uma criança que estamos ensinando, um livrinho que estamos escrevendo...”.
Escrever um livrinho (“livrinho” no diminutivo, coisa simples; os livros grandes me assustam...).
Plantar um jardim (nossa vocação suprema, jardineiros, cuidar da Terra).
Ensinar uma criança...
Mas essas, precisamente, são as vocações que me comovem. Livrinhos para crianças, já escrevi muitos. Jardins, não sei quantos eu plantei. Agora eu sinto que gostaria de ser um professor de crianças ainda no curso primário. As crianças nos salvam do envelhecimento triste. Recordo o que Bachelard disse sobre elas: “Na idade do envelhecimento a lembrança da infância devolve-nos aos sentimentos finos, a essa ‘saudade risonha’ das grandes atmosferas baudelairianas. A infância não é uma coisa que morre em nós e seca uma vez cumprido o seu ciclo. É o mais vivo dos tesouros e continua a nos enriquecer sem que o saibamos”. Eu quero voltar às crianças para me salvar...
Se eu fosse seguir o caminho que Hesse escolheu para os últimos anos de sua vida, isso é, se eu resolvesse usar o meu tempo para ensinar uma criança, o que gostaria de ensinar? O que tenho para dar a um menino ou menina? Por qual caminho eu os levaria a passear?
Rubem Alves, in Pimentas: para provocar um incêndio, não é preciso fogo

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