terça-feira, 9 de outubro de 2018

O mau vidraceiro

Há naturezas puramente contemplativas e de todo impróprias para a ação. No entanto, por um impulso misterioso e desconhecido, agem às vezes com uma rapidez de que elas mesmas se julgariam incapazes.
Uns, com receio de encontrar na entrada de casa mais outra infeliz, perambulam covardemente diante da porta, sem se decidirem a entrar; outros guardam uma carta durante quinze dias sem abri-la; outros só ao cabo de seis meses se resignam a fechar um negócio necessário há mais de um ano. Não obstante, às vezes, sentem-se bruscamente precipitados na ação por uma força irresistível, como a flecha de um arco. O médico e o moralista, que tudo pretendem saber, não podem explicar como essas almas ociosas e cheias de volúpia adquirem de repente tão louca energia, nem como, embora incapazes de realizar as coisas mais simples e mais necessárias, revelam de uma hora para outra uma coragem inaudita para praticar os atos mais absurdos e muitas vezes os mais perigosos.
Um dos meus amigos, o mais inofensivo sonhador que jamais existiu, incendiou certa vez uma floresta, para ver, dizia ele, se o fogo pegava com tanta facilidade como em geral se afirmava. Dez vezes em seguida, a experiência falhou; mas, na décima primeira, teve um êxito completo.
Haverá quem acenda um charuto ao lado de uma barrica de pólvora, para ver, para saber, para tentar o destino, para ver-se forçado a dar prova de energia, a arriscar-se, para conhecer os prazeres da ansiedade, ou à toa, por capricho, por distração.
É uma espécie de energia que transborda do enfado e do sonho. Aqueles em que ela se manifesta tão inopinadamente são, em geral, como eu disse, os mais indolentes e os mais sonhadores dos seres.
Haverá igualmente quem, embora leve a própria timidez ao ponto de baixar os olhos quando encara os homens, e ao ponto de precisar reunir toda a sua pobre vontade para entrar num café ou passar diante da bilheteria de um teatro, onde os fiscais lhe parecem revestidos da majestade de Minos, de Eaco ou de Radamanto, saltará bruscamente ao pescoço de um velho que passar ao seu lado e o abraçará com entusiasmo diante da multidão espantada.
Porquê? Porque... porque essa fisionomia lhe era irresistivelmente simpática? Talvez; é mais legítimo, porém, supor que ele próprio não sabe porquê.
Eu tenho sido, por mais de uma vez, vítima dessas crises e desses impulsos, que nos autorizam a acreditar que haja demônios maliciosos dentro de nós, para nos fazerem realizar, à nossa revelia, as suas mais absurdas vontades.
Uma manhã, eu me levantara mal humorado, triste, cansado de ócio. E, sentindo-me levado a fazer alguma coisa grandiosa, a praticar um ato notável, abri a janela, e ai de mim! (Peço-vos observar que o espírito de mistificação que, em certas pessoas, não é o resultado de um trabalho ou de uma combinação, mas de uma inspiração fortuita, participa muito, embora só pelo ardor do desejo, desse humor, histérico segundo os médicos, que nos leva a praticar sem resistência uma porção de atos perigosos ou inconvenientes.).
A primeira pessoa que descobri na rua foi um vidraceiro cujo grito agudo, discordante, subiu até a mim através a pesada e suja atmosfera parisiense. Ser-me-ia, aliás, impossível dizer porque fui tomado para com aquele pobre homem de um ódio tão súbito quanto despótico.
Olá! Olá! — gritei-lhe dizendo que subisse.
E ao mesmo tempo eu pensava, não sem um certo contentamento, que, sendo o quarto no sexto andar e a escada muito estreita, o homem devia encontrar dificuldade na subida e ir batendo em vários lugares com os ângulos de sua frágil mercadoria.
Afinal, ele apareceu e eu pus-me a examinar curiosamente os vidros, dizendo-lhe: — Como? Não tem vidros de cor? Cor de rosa, vermelhos, azuis, mágicos, do paraíso? Sem vergonha! Tem a coragem de andar passeando nos bairros pobres sem ter vidros que embelezem a vida! E o empurrei com força pela escada abaixo, por onde ele foi rolando aos gritos.
Depois, aproximei-me da sacada, segurando uma pequena jarra de flores, e, quando o homem tornou a aparecer na saída da porta, deixei-lhe cair perpendicularmente o meu engenho de guerra em cima da bagagem. O choque derrubou-o e ele acabou de quebrar com as costas toda aquela fortuna ambulatória, que produziu o ruído estridente de um palácio de cristal atingido pelo raio.
Então, ébrio de loucura, gritei-lhe furiosamente: — A vida embelezada! A vida embelezada! Essas nervosas brincadeiras não deixam de ter seus riscos e podem custar caro. Mas, que importa a eternidade da maldição, para quem achou num segundo o gozo infinito?
Charles Baudelaire, in Pequenos poemas em prosa

Nenhum comentário:

Postar um comentário