terça-feira, 9 de outubro de 2018

O homem que confundiu a mulher com um chapéu

Prometi que iria relatar 0 caso clínico do homem que confundiu a sua esposa com um chapéu. Não se trata de ficção. O que quero dizer com isso é que esse caso não é uma estória inventada, como “A terceira margem do rio” ou “O afogado mais lindo do mundo”. Mas que tem uma pitada de ficção, isso lá tem. Não conhecemos aquilo a que damos o nome de “fatos”. Os ditos “fatos” são apenas uma matéria-prima bruta que a imaginação, essa artista que mora em nós, usa para fazer suas “artes”, no sentido duplo da palavra. Cada um conta do seu jeito... Quem conta é Oliver Sacks, um famosíssimo neurologista. Aconselharia a todos que lessem os seus livros. São fascinantes, porque nos fazem entrar no mundo bizarro da alma humana. Pois ele foi procurado por um homem que a ele veio, empurrado por amigos, para lidar com algo estranho em sua forma de ver as coisas. Sacks relata a primeira entrevista, ele e o homem conversando de maneira normal, sem que fosse possível notar qualquer coisa que sugerisse alguma perturbação mental. Mas Sacks ficou intrigado com um sentimento estranho: ele tinha a impressão de que aquele homem que o encarava de frente não o estava vendo. Tinha os olhos perfeitos, via tudo, mas não via... Até que ele, Sacks, atinou com o mistério dos seus olhos: eles viam as partes perfeitamente bem, mas não eram capazes de juntá-los num todo significativo. Via as orelhas, a boca, o nariz, os cabelos — mas os viam soltos, sem que se encaixassem para formar um rosto. Sim, os olhos daquele homem não eram capazes de ver um rosto. Diante de uma fotografia do seu irmão que lhe foi mostrada com a pergunta “Quem é essa pessoa?”, ele se pôs imediatamente a descrever as partes da imagem com a maior precisão. A testa larga, os lábios finos, o nariz ligeiramente achatado, o maxilar... “Esse maxilar, com esse ângulo me faz pensar... Sabe? Meu irmão tem um maxilar com um ângulo exatamente igual a esse. Será, por acaso, uma foto do meu irmão?”. Ele foi incapaz de reconhecer o rosto do irmão. Chegou ao irmão através da geometria: a igualdade dos ângulos do maxilar. “O que é isso?”, Sacks lhe perguntou, mostrando-lhe uma luva. “Bem, trata-se de um saco maior do qual saem cinco sacos finos e compridos...” Isso é precisamente uma luva. Mas ele era incapaz de reconhecer, naquilo que via, uma luva. Seus olhos só percebiam as partes. O interessante das patologias é que elas frequentemente não passam de traços comuns das pessoas ditas normais, aumentados por meio de uma lupa. A patologia, assim, serve-nos como um espelho. As grandes bizarrices da patologia são nossas pequenas bizarrices vistas através de um zoom ... Como é o caso do homem que assistiu a um concerto e dele o que mais o impressionou foi a calva do clarinetista... Às vezes eu tenho a impressão de que a especialização científica pode produzir um efeito semelhante: os cientistas se tornam especialistas nas partes e as conhecem com grande precisão. Mas ficam perdidos quando se trata de ver o “rosto” da realidade. Na verdade, nem mesmo reconhecem o seu próprio rosto quando o veem no espelho. Essas associações foram provocadas pelo homem, desconhecido, que toma a sopa mas só percebe o lascado na beirada do prato…
Rubem Alves, in Pimentas: para provocar um incêndio, não é preciso fogo

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