Conheci-a
num coquetel no seu apartamento em Roma: uma mulherzinha intensa,
minúscula, arredondada. Pensei imediatamente em dar-lhe um lugar de
destaque na coleção de gnomos humanos de jardim, que venho
selecionando há um ano e já vai bem adiantada. Devia andar pelos
45, mas 45 bem cuidados, a julgar pelo fundo da pele, pelo dorso das
mãos e pelo colo almofadado, dando apenas a entender. Um colo
arfante, naturalmente.
Olhou-me
com olhos úmidos e sua boca rasgada abriu um sorriso à anúncio. O
tom com que me falou foi de um recolhimento quase religioso:
-
Ah, é o poeta.
Fiquei
com vontade de engrossar de saída e responder: “Não, é o
cobrador da Light”, mas me contive. Ela suspirou fundo - coisa que,
aliás, deveria fazer num crescendo assustador - e sem mudar de tom,
mas endurecendo ligeiramente as pupilas, voltou- se para minha mulher
:
-
Que coisa divina ser a companheira de um poeta, a sua musa
inspiradora! E que responsabilidade... Porque os poetas, em geral,
são pródigos de amor: não é, poeta?
Quis
reagir, mas inutilmente. Sorrimos aquele sorriso, e enquanto minha
mulher fingia procurar qualquer coisa na bolsa, eu balbuciei um “É”
que merecia ser gravado, pois jamais ouvi nada tão alvar. Ela
acertou o vestido nas ancas, num gesto muito característico das
mulheres que ainda não desistiram de todo, e aproximando o rosto do
meu, segredou-me conivente:
-
Aposto que já fez sofrer muitos corações femininos...
Assumi,
sem saber bem o que dizer, um ar modesto de “mais ou menos”, e já
meio baratinado pela ação irradiante de tanto óbvio, respondi sem
tirar nem pôr o que aqui vai:
-
Qual nada ... A senhora está exagerando... São seus bons olhos...
Eu até não sou disso ...
Ela
fixou-me ardentemente, numa expressão
só-eu-sou-capaz-de-compreender- a-alma-dos- poetas e logo, desviando
o olhar do meu para ir perdê-lo na distância, arrematou:
-
Dizer que os cientistas estudaram tanto para enviar ao espaço os
cosmonautas... E estas mãos (ela tomou-me uma com infinita
delicadeza) num simples dedilhar de algumas cordas, nos transportam
logo ao céu!
Fiquei
com vontade de protestar, de dizer-lhe que estava havendo um erro de
pessoa, que ela queria provavelmente se referir a Baden ou Bonfá;
mas ela num súbito arroubo que conseguiu elevar-lhe a estatura de
dois centímetros, dirigiu-se a minha mulher não sem uma ameaça
velada na voz:
-
Você sabe a responsabilidade que tem, menina? ser a companheira de
um poeta, de um compositor? Você sabe que ele não se pertence, é
um patrimônio de todos nós? Você sabe o que é ser musa de um
poeta?
Minha
mulher, que é muito mais Manuel Bandeira, e tal já me fez ver,
chegou a olhar-me com uma certa surpresa enquanto eu, no auge da
covardia, procurava abrandar a sagrada cólera da Begum do
Lugar-Comum, como a passamos a chamar depois:
-
Ela é boazinha, ouviu...
E
sem saber mais o que fazer, ofereci-lhe um cigarro, que ela declinou
com seca compunção:
-
O poeta vai me perdoar, mas uma mulher (e fuzilou a minha com os
olhos) deve ter na boca um gosto de amor e não de fumo...
-
Falou pouco, mas bem...
Era
a rendição. Ela sorriu deliciada:
-
Ah! poeta... As mulheres como eu só falam a linguagem do coração...
Na
despedida tomou-me familiarmente o braço até a porta, sem dar a
menor importância à “minha musa”.
-
Agora que já sabe o caminho, volte sempre. O ninho é pequeno mas o
afeto é grande. Eu serei sempre... toda ouvidos...
A
porta fechada, descendo as escadas para a rua, eu me surpreendi com
horror dizendo à minha “companheira”.
-
Que tal se fôssemos ao Alfredo, comer um fettuccini al triplo
burro?
Vinicius
de Moraes, in Prosa
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