segunda-feira, 1 de outubro de 2018

Na escola

Democrata é dona Amarílis, professora na escola pública de uma rua que não vou contar, e mesmo o nome de dona Amarílis é inventado, mas o caso aconteceu.
Ela se virou para os alunos, no começo da aula, e falou assim:
Hoje eu preciso que vocês resolvam uma coisa muito importante. Pode ser?
Pode — a garotada respondeu em coro.
Muito bem. Será uma espécie de plebiscito. A palavra é complicada, mas a coisa é simples. Cada um dá sua opinião, a gente soma as opiniões e a maioria é que decide. Na hora de dar opinião, não falem todos de uma vez só, porque senão vai ser muito difícil eu saber o que é que cada um pensa. Está bem?
Está — respondeu o coro, interessadíssimo.
Ótimo. Então, vamos ao assunto. Surgiu um movimento para as professoras poderem usar calça comprida nas escolas. O governo disse que deixa, a diretora também, mas no meu caso eu não quero decidir por mim. O que se faz na sala de aula deve ser de acordo com os alunos. Para todos ficarem satisfeitos e um não dizer que não gostou. Assim não tem problema. Bem, vou começar pelo Renato Carlos. Renato Carlos, você acha que sua professora deve ou não deve usar calça comprida na escola?
Acho que não deve — respondeu, baixando os olhos.
Por quê?
Porque é melhor não usar.
E por que é melhor não usar?
Porque minissaia é muito mais bacana.
Perfeito. Um voto contra. Marilena, me faz um favor, anote aí no seu caderno os votos contra. E você, Leonardo, por obséquio, anote os votos a favor, se houver. Agora quem vai responder é Inesita.
Claro que deve, professora. Lá fora a senhora usa, por que vai deixar de usar aqui dentro?
Mas aqui dentro é outro lugar.
É a mesma coisa. A senhora tem uma roxo-cardeal que eu vi outro dia na rua, aquela é bárbara.
Um a favor. E você, Aparecida?
Posso ser sincera, professora?
Pode, não. Deve.
Eu, se fosse a senhora, não usava.
Por quê?
O quadril, sabe? Fica meio saliente…
Obrigada, Aparecida. Você anotou, Marilena? Agora você, Edmundo.
Eu acho que Aparecida não tem razão, professora. A senhora deve ficar muito bacana de calça comprida. O seu quadril é certinho.
Meu quadril não está em votação, Edmundo. A calça, sim. Você é contra ou a favor da calça?
A favor 100%.
Você, Peter?
Pra mim tanto faz.
Não tem preferência?
Sei lá. Negócio de mulher eu não me meto, professora.
Uma abstenção. Mônica, você fica encarregada de tomar nota dos votos iguais ao de Peter; nem contra nem a favor, antes pelo contrário.
Assim iam todos votando, como se escolhessem o presidente da República, tarefa que talvez, quem sabe? no futuro sejam chamados a desempenhar. Com a maior circunspeção. A vez de Rinalda:
Ah, cada um na sua.
Na sua, como?
Eu na minha, a senhora na sua, cada um na dele, entende?
Explique melhor.
Negócio seguinte. Se a senhora quer vir de pantalona, venha. Eu quero vir de mídi, de máxi, de short, venho. Uniforme é papo furado.
Você foi além da pergunta, Rinalda. Então é a favor?
Evidente. Cada um curtindo à vontade.
Legal! — exclamou Jorgito. — Uniforme está superado, professora. A senhora vem de calça comprida, e a gente aparecemos de qualquer jeito.
Não pode — refutou Gilberto. — Vira bagunça. Lá em casa ninguém anda de pijama ou de camisa aberta na sala. A gente tem de respeitar o uniforme.
Respeita, não respeita, a discussão esquentou, dona Amarílis pedia ordem, ordem, assim não é possível, mas os grupos se haviam extremado, falavam todos ao mesmo tempo, ninguém se fazia ouvir, pelo que, com quatro votos a favor de calça comprida, dois contra, e um tanto faz, e antes que fosse decretada por maioria absoluta a abolição do uniforme escolar, a professora achou prudente declarar encerrado o plebiscito, e passou à lição de história do Brasil.
Carlos Drummond de Andrade, in 70 historinhas

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