Democrata é dona Amarílis, professora
na escola pública de uma rua que não vou contar, e mesmo o nome de
dona Amarílis é inventado, mas o caso aconteceu.
Ela se virou para os alunos, no começo
da aula, e falou assim:
— Hoje eu preciso que vocês resolvam
uma coisa muito importante. Pode ser?
— Pode — a garotada respondeu em
coro.
— Muito bem. Será uma espécie de
plebiscito. A palavra é complicada, mas a coisa é simples. Cada um
dá sua opinião, a gente soma as opiniões e a maioria é que
decide. Na hora de dar opinião, não falem todos de uma vez só,
porque senão vai ser muito difícil eu saber o que é que cada um
pensa. Está bem?
— Está — respondeu o coro,
interessadíssimo.
— Ótimo. Então, vamos ao assunto.
Surgiu um movimento para as professoras poderem usar calça comprida
nas escolas. O governo disse que deixa, a diretora também, mas no
meu caso eu não quero decidir por mim. O que se faz na sala de aula
deve ser de acordo com os alunos. Para todos ficarem satisfeitos e um
não dizer que não gostou. Assim não tem problema. Bem, vou começar
pelo Renato Carlos. Renato Carlos, você acha que sua professora deve
ou não deve usar calça comprida na escola?
— Acho que não deve — respondeu,
baixando os olhos.
— Por quê?
— Porque é melhor não usar.
— E por que é melhor não usar?
— Porque minissaia é muito mais
bacana.
— Perfeito. Um voto contra. Marilena,
me faz um favor, anote aí no seu caderno os votos contra. E você,
Leonardo, por obséquio, anote os votos a favor, se houver. Agora
quem vai responder é Inesita.
— Claro que deve, professora. Lá fora
a senhora usa, por que vai deixar de usar aqui dentro?
— Mas aqui dentro é outro lugar.
— É a mesma coisa. A senhora tem uma
roxo-cardeal que eu vi outro dia na rua, aquela é bárbara.
— Um a favor. E você, Aparecida?
— Posso ser sincera, professora?
— Pode, não. Deve.
— Eu, se fosse a senhora, não usava.
— Por quê?
— O quadril, sabe? Fica meio saliente…
— Obrigada, Aparecida. Você anotou,
Marilena? Agora você, Edmundo.
— Eu acho que Aparecida não tem razão,
professora. A senhora deve ficar muito bacana de calça comprida. O
seu quadril é certinho.
— Meu quadril não está em votação,
Edmundo. A calça, sim. Você é contra ou a favor da calça?
— A favor 100%.
— Você, Peter?
— Pra mim tanto faz.
— Não tem preferência?
— Sei lá. Negócio de mulher eu não
me meto, professora.
— Uma abstenção. Mônica, você fica
encarregada de tomar nota dos votos iguais ao de Peter; nem contra
nem a favor, antes pelo contrário.
Assim iam todos votando, como se
escolhessem o presidente da República, tarefa que talvez, quem sabe?
no futuro sejam chamados a desempenhar. Com a maior circunspeção. A
vez de Rinalda:
— Ah, cada um na sua.
— Na sua, como?
— Eu na minha, a senhora na sua, cada
um na dele, entende?
— Explique melhor.
— Negócio seguinte. Se a senhora quer
vir de pantalona, venha. Eu quero vir de mídi, de máxi, de short,
venho. Uniforme é papo furado.
— Você foi além da pergunta, Rinalda.
Então é a favor?
— Evidente. Cada um curtindo à
vontade.
— Legal! — exclamou Jorgito. —
Uniforme está superado, professora. A senhora vem de calça
comprida, e a gente aparecemos de qualquer jeito.
— Não pode — refutou Gilberto. —
Vira bagunça. Lá em casa ninguém anda de pijama ou de camisa
aberta na sala. A gente tem de respeitar o uniforme.
Respeita, não respeita, a discussão
esquentou, dona Amarílis pedia ordem, ordem, assim não é possível,
mas os grupos se haviam extremado, falavam todos ao mesmo tempo,
ninguém se fazia ouvir, pelo que, com quatro votos a favor de calça
comprida, dois contra, e um tanto faz, e antes que fosse decretada
por maioria absoluta a abolição do uniforme escolar, a professora
achou prudente declarar encerrado o plebiscito, e passou à lição
de história do Brasil.
Carlos Drummond de Andrade,
in 70 historinhas
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