I
Depois
da aposentadoria dos dois professores de filosofia, Morris Raphael
Cohen e Harry Overstreet, os integrantes do Departamento de Filosofia
da Faculdade Municipal de Nova York (College of the City of New
York), bem como a administração da instituição, concordaram em
convidar um filósofo eminente a preencher uma das posições vagas.
O Departamento recomendou que fosse feito um convite a Bertrand
Russell, que na época lecionava na Universidade da Califórnia. Essa
recomendação foi aprovada com entusiasmo pelo corpo docente e pelo
reitor em exercício da faculdade, pelo comitê administrativo do
Conselho de Educação Superior e, finalmente, pelo próprio
Conselho, que aprova as indicações nesse grau. Ninguém com fama e
distinção comparáveis jamais havia lecionado na faculdade
municipal. Dezenove dos vinte e dois integrantes do Conselho
estiveram presentes à reunião em que a indicação foi discutida, e
todos os dezenove votaram a seu favor. Quando Bertrand Russell
aceitou o convite, Ordway Tead, presidente do Conselho, enviou-lhe a
seguinte carta:
Meu
caro professor Russell:
É
com um profundo sentimento de privilégio que aproveito esta
oportunidade para notificá-lo de sua indicação como professor de
filosofia da Faculdade Municipal para o período de 1 o de fevereiro
de 1941 a 30 de junho de 1942, em observância à decisão tomada
pelo Conselho de Educação Superior em sua reunião do dia 26 de
fevereiro de 1940.
Sei
que sua aceitação desta indicação trará brilho ao nome e às
conquistas do Departamento e da Faculdade, bem como aprofundará e
estenderá o interesse da faculdade pelas bases filosóficas da vida
humana.
Concomitantemente,
o reitor em exercício, Mead, divulgou um informativo à imprensa
afirmando que a faculdade tinha a sorte singular de assegurar os
serviços de um catedrático de renome mundial como lorde Russell. A
data desse acontecimento foi 24 de fevereiro de 1940.
Tendo
em vista os desdobramentos posteriores, faz-se necessário enfatizar
dois fatos. Bertrand Russell deveria lecionar os seguintes três
cursos, e não outro:
Filosofia
13: Estudo dos conceitos modernos de lógica e de sua relação com a
ciência, a matemática e a filosofia.
Filosofia
24B: Estudo dos problemas dos fundamentos da matemática.
Filosofia
27: As relações das ciências puras com as aplicadas e a influência
recíproca entre a metafísica e as teorias científicas.
Além
do mais, na época em que Bertrand Russell foi nomeado, apenas homens
podiam assistir a cursos diurnos em matérias de artes liberais na
Faculdade Municipal.
II
Quando
a indicação de Russell tornou-se pública, o bispo Manning, da
Igreja Episcopal Protestante, escreveu uma carta a todos os jornais
de Nova York, em que denunciava a ação do Conselho. “O que se
pode dizer de faculdades e universidades”, escreveu ele, “que
afirmam à nossa juventude ser um professor responsável de filosofia
(...) um homem que é propagandista reconhecido de um pensamento
contrário à religião e à moral, e que especificamente defende o
adultério (...). Será que alguém que se importe com o bem-estar do
nosso país estará disposto a ver tais ensinamentos disseminados com
a aceitação de nossas faculdades e universidades?” Retomando a
ofensiva alguns dias depois, o bispo acrescentou: “Há aqueles que
têm tanta confusão moral e mental que nada veem de errado na
indicação (...) de alguém que, em seus escritos publicados, disse
que ‘fora dos desejos humanos não existe padrão moral’”.
Deve-se notar, aliás, que, se fosse requisito dos professores de
filosofia rejeitar o relativismo ético em suas diversas formas, como
o bispo Manning dava a entender, metade ou mais deles teria de ser
sumariamente demitida.
A
carta do bispo foi o sinal de uma campanha de difamação e
intimidação sem igual na história dos Estados Unidos desde o tempo
de Jefferson e Thomas Paine. Os jornais eclesiásticos, a editora
Hearst e praticamente todos os políticos democratas juntaram-se ao
coro de difamação. A indicação de Russell, dizia The Tablet,
veio como um “choque brutal e aviltante para os antigos
nova-iorquinos e todos os verdadeiros norte-americanos”. Exigindo
que a indicação fosse revogada, a publicação, em seu editorial,
descreveu Russell como um “professor de paganismo”, como “o
anarquista filosófico e niilista moral da Grã-Bretanha (...) cuja
defesa do adultério transformou-se em algo tão detestável que há
relatos de um de seus ‘amigos’ falando mal dele”. O jornal
jesuíta semanal, America, foi ainda mais educado.
Referia-se a Russell como um “defensor da promiscuidade sexual sem
nenhuma vitalidade emocional ou intelectual, divorciado e decadente
(...) que, no momento está doutrinando os alunos da Universidade da
Califórnia (...) a respeito de suas regras libertárias relativas à
vida licenciosa em questões de sexo e amor promíscuo e casamento
inconstante (...). Esse indivíduo corrupto (...) que traiu sua
‘mente’ e ‘consciência’ (...), esse professor de imoralidade
e ateísmo (...) que foi posto no ostracismo por ingleses decentes”.
As cartas aos editores desses periódicos eram ainda mais frenéticas.
Se o Conselho de Educação Superior não rescindisse seu contrato,
dizia um dos correspondentes de The Tablet, então “Areias
movediças ameaçam! A serpente está no relva! O verme está ocupado
na mente! Se Bertrand Russell fosse honesto pelo menos consigo mesmo,
declararia, como fez Rousseau: ‘Não posso olhar para nenhum dos
meus livros sem tremer; em vez de instruir, corrompo; em vez de
alimentar, enveneno. Mas a paixão me cega, e com todos os meus belos
discursos não sou nada além de um canalha’.” A carta era uma
cópia de um telegrama enviado ao prefeito LaGuardia. “Imploro à
V. Exa.”, o texto prosseguia, “que proteja a nossa juventude da
influência perniciosa dele e de sua pena envenenada – um símio de
talento, ele é o ministro do mal entre os homens.”
Nesse
ínterim, Charles H. Tuttle, integrante do Conselho e leigo de
destaque na Igreja Episcopal Protestante, anunciou que, na reunião
seguinte do Conselho, no dia 18 de março, ele entraria com uma moção
para que a indicação fosse reconsiderada. Tuttle explicou que, na
época da indicação, ele não estava a par das opiniões de
Russell. Teria votado contra se as conhecesse na época. Faltando
apenas alguns dias para a reunião, os fanáticos então fizeram tudo
o que podiam para amedrontar os integrantes do Conselho e expandir o
catálogo de pecados de Russell. “Nosso grupo”, disse Winfield
Demarest, da Liga da Juventude Norte-Americana, “não concorda com
a ideia de Russell relativa a alojamentos para ambos os sexos.”
Exigindo uma investigação do Conselho de Educação Superior, o
Journal & American (hoje Journal-American), da
editora Hearst, afirmava que Russell apoiava a “nacionalização
das mulheres (...), a gravidez fora do casamento (...) e crianças
educadas como penhor de um Estado leigo”. Por meio do dispositivo
de fazer citações fora de contexto de um livro escrito havia muitos
anos, também classificava Russell como expoente do comunismo. Apesar
da oposição bastante conhecida de Russell ao comunismo soviético,
ele passou a ser, a partir de então, constantemente citado como
“pró-comunista” pelos zelotes. De todos os aspectos dessa
campanha de ódio, talvez nenhum tenha sido mais abjeto do que essa
paródia deliberada.
Moções
exigindo a expulsão de Russell e também, regra geral, a expulsão
dos membros do Conselho que haviam votado a favor de sua indicação
eram aprovadas diariamente por diversas organizações muito
conhecidas por seu interesse na educação, tais como a Filhos de
Xavier, a representação em Nova York da Associação Central
Católica da América, a Antiga Ordem dos Hibérnicos, os Cavaleiros
de Colombo, a Ordem dos Advogados Católicos, a Sociedade do Santo
Nome de Santa Joana d’Arc, a Conferência Metropolitana dos
Ministros Batistas, a Conferência do Meio-Oeste da Sociedade das
Mulheres da Nova Inglaterra e Os Filhos da Revolução
Norte-Americana do Estado de Nova York. Essas eram relatadas na
imprensa, juntamente com profundas orações da parte de luminares
clericais, cujos ataques se centravam cada vez mais em torno de duas
acusações: de que Russell era estrangeiro e, portanto, estava
legalmente impedido de lecionar na faculdade, e de que suas opiniões
a respeito do sexo eram, de algum modo, incentivos ao crime. “Por
que não pôr os homens do FBI atrás do seu Conselho de Educação
Superior?”, perguntava o reverendo John Schultz, professor de
Eloquência Sagrada no Seminário Redentorista em Esopus, Estado de
Nova York. “Aos jovens desta cidade”, prosseguia o notável
erudito, “ensina-se que não existe tal coisa como a mentira. São
ensinados que os assaltos são justificáveis, assim como os roubos e
os saques. São ensinados, como Loeb e Leopold foram ensinados na
Universidade de Chicago, que crimes cruéis e desumanos são
justificáveis.” Desnecessário dizer que todas essas coisas
pavorosas estavam intimamente ligadas à indicação de Bertrand
Russell – “a mente superior por trás do amor livre, da
promiscuidade sexual para os jovens, do ódio aos pais”. Como se
isso não bastasse, Russell também foi associado, por outro orador,
a “poças de sangue”. Ao falar durante o café da manhã anual de
confraternização da Sociedade do Santo Nome do Departamento de
Polícia de Nova York, o monsenhor Francis W. Walsh lembrou aos
policiais ali reunidos que eles tinham, na ocasião adequada,
aprendido o significado completo do chamado “triângulo
matrimonial” ao encontrar um dos cantos do triângulo em uma poça
de sangue. “Ouso dizer, portanto”, ele prosseguiu, “que os
senhores se juntarão a mim ao exigir que qualquer professor culpado
de ensinar ou escrever coisas que multiplicarão os palcos sobre os
quais essas tragédias se representarão não sejam tolerados nesta
cidade nem recebam apoio dos contribuintes (...).”
Ao
passo que o prefeito LaGuardia permaneceu em um silêncio bem
estudado, diversos políticos do Tammany entraram em ação. Sua
concepção de liberdade acadêmica foi muito bem revelada por John
F.X. McGohey, primeiro procurador distrital substituto do estado de
Nova York e presidente da associação Filhos de Xavier (hoje juiz
McGohey), que protestou contra o uso do dinheiro dos contribuintes
para “pagar pelo ensino de uma filosofia de vida que nega a Deus,
desafia a decência e contradiz completamente o caráter religioso
fundamental de nosso país, nosso governo e nosso povo”. No dia 15
de março, três dias antes da próxima reunião marcada do Conselho,
o presidente distrital do Bronx, James J. Lyons, uma das principais
armas da oposição a Russell, apresentou uma moção na Câmara
Municipal pedindo que o Conselho cancelasse a nomeação do
professor. A moção foi aprovada por 16 votos contra 5. Deve ficar
aqui registrado, como testemunho permanente de sua coragem e
indiferença ao sentimento da multidão, que o republicano Stanley
Isaacs defendeu vigorosamente Bertrand Russell e o Conselho de
Educação Superior. Além de apresentar sua resolução, Lyons
anunciou que, na discussão do próximo orçamento, ele apresentaria
uma moção para “acabar com a linha que fornece a compensação
financeira para esta nomeação perigosa”. O presidente distrital
Lyons, no entanto, foi brando e suave, em comparação com o
presidente distrital do Queens, George V. Harvey, que declarou, num
comício popular, que, se Russell não fosse deposto, instalaria uma
moção para que toda a verba de 7.500 milhões de dólares, para a
manutenção das faculdades municipais no ano de 1941, fosse
suspensa. Se as coisas acontecessem à sua maneira, ele disse, “as
faculdades seriam religiosas, americanas, ou seriam fechadas”. No
mesmo comício de protesto, outros oradores eminentes e dignos foram
ouvidos. Referindo-se a Russell como um “cão”, o vereador
Charles E. Keegan observou que, “se tivéssemos um sistema adequado
de imigração, esse vagabundo não poderia aportar dentro de mil
milhas de distância da nossa terra”. Mas já que desembarcara, a
senhorita Martha Byrnes, escrivã do condado de Nova York, disse ao
público o que fazer com o “cão”. Russell, bradou ela, deveria
ser “coberto de piche e penas e ser expulso do país”. Isso,
acredito, é o que os oradores queriam dizer quando falavam em
“devoção” e na maneira “americana” de fazer as coisas.
Paul
Edwards, in Apêndice do livro Por que não sou cristão,
de Bertrand Russell
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