Neste
encontro iremos falar da Não-Violência no contexto do progresso
social. Eu acho extremamente interessante que se abordem estes temas
em Moçambique, sobretudo se o fizermos de maneira inovadora e com
abertura para encontrar soluções. Existe nos nossos países — eu
falo do nosso continente — uma tendência para substituir o
pensamento crítico pela facilidade de apontar culpas e crucificar
culpados. O mundo surge como uma coisa simplificada em que os
culpados são os outros e as vítimas somos sempre nós. Esta
facilidade é muito tentadora, mas é uma mentira.
A
atitude de nos fabricarmos a nós mesmos como simples vítimas é uma
das principais razões para os problemas de África e dos africanos.
Todo o nosso discurso continua centrado na culpabilização do
passado colonial e da dominação estrangeira. A culpa é sempre o
Outro. Esse outro pode ser uma outra raça, uma outra etnia, uma
outra religião. Nós estamos sempre isentos de procurar dentro de
nós as causas profundas dos nossos problemas.
Li
há poucos dias que o governo do Zimbábue, cansado de acusar o
Ocidente pelo caos que vive, passou a acusar os países vizinhos,
incluindo Moçambique. Nós, Moçambique e os restantes vizinhos da
África Austral, fomos acusados de aliciar os professores
Zimbábuenses a saírem do Zimbábue. Existe, de facto, uma fuga
dramática de professores daquele país e, apenas no ano passado, 25
mil professores qualificados fugiram do país. A verdade é que não
são apenas professores que procuram o exílio. Há uma debandada
geral do Zimbábue. Numa nação de 12 milhões de habitantes, 3
milhões já saíram para escapar do desespero causado por políticos
irresponsáveis. A crise interna é tão grave que o Zimbábue passou
de nação próspera para um país em ruínas com mais de 80% de
desemprego e o recorde mundial da inflação. No entanto, para o
governo zimbabuense a razão do exílio dos professores não está
dentro do país, está no complô externo.
Este
parece um caso caricato, mas todos nós praticamos, mesmo que seja
inconscientemente, este procedimento de invenção de culpados e
absolvição de responsabilidades.
Falaremos
neste encontro de Não-Violência que é um modo de dizer que
falaremos da violência. Ora eu considero que é urgente e imperioso
discutir a violência em Moçambique, sobretudo por duas razões:
— A
primeira razão por que a violência maior actua de modo silencioso,
e das poucas vezes que falamos dela falamos apenas da ponta do
icebergue. Nós acreditamos que estamos perante fenômenos de
violência apenas quando essa tensão assume proporções visíveis,
quando ela surge como espetáculo mediático. Mas esquecemos que
existem formas de violência oculta que são gravíssimas.
Esquecemos, por exemplo, que todos os dias, no nosso país, são
sexualmente violentadas crianças. E que, na maior parte das vezes,
os agressores não são estranhos. Quem viola essas crianças são
principalmente parentes. Quem pratica esse crime é gente da própria
casa.
Nós
temos níveis altíssimos de violência doméstica, e, em particular,
de violência contra a mulher. Mas esse assunto parece ser
preocupação de poucos. Fala-se disso em algumas ONG s, em alguns
seminários. A Lei contra a violência doméstica ainda não foi
aprovada na Assembleia da República.
Existem
várias outras formas invisíveis de violência. Existe violência
quando os camponeses são expulsos sumariamente das suas terras por
gente poderosa e não possuem meios para defender os seus direitos.
Existe uma violência contida quando, perante o agente corrupto da
autoridade, não nos surge outra saída senão o suborno. Existe,
enfim, a violência terrível que é o vivermos com medo. E existe
essa outra violência maior que é considerarmos a violência como um
facto normal. Existe, em suma, essa terrível aprendizagem de
negarmos em nós mesmos tudo que nos ensinaram como valor humano: o
ser solidário com os outros, os que sofrem.
Recordo-me
de que certa noite circulava por uma estrada da costa de Inhambane.
Estava sozinho na viatura e não se via vivalma nas redondezas. De
súbito, deparo com um corpo atravessado na estrada. Todas as normas
de segurança sugeriam que eu não parasse. Podia realmente ser uma
emboscada. Mas podia simplesmente ser um homem ferido que carecia de
ajuda. Algo me impelia a abrir a porta e a aproximar-me do indivíduo
que não parecia dar acordo de si. Uma voz dentro de mim
segredava-me: passa ao lado e segue o teu caminho. Esse momento de
indecisão dentro de mim foi das mais graves violências praticadas
por mim contra mim próprio. “O que o medo fez de nós”, pensei
enquanto ajudava o pobre homem que estava simplesmente embriagado.
O
que eu quero dizer é que persistem, na nossa casa colectiva, formas
silenciosas e ocultas de violência que não podem ser esquecidas num
debate como este. Esquecer os deveres básicos de solidariedade é
uma violência, uma cobardia escondida em nome do bom-senso.
— A
segunda razão por que é importante falar de violência em
Moçambique resulta do facto de persistir o mito de que nós,
moçambicanos, somos um povo não violento, um povo ordeiro. Esta
mistificação é tão enraizada que muitos acreditam profunda e
genuinamente nela. Pode ter havido dezesseis anos de guerra civil, de
uma guerra cruel, violentíssima, pode ter havido tudo isso muito
recentemente, mas mesmo assim ninguém retira do discurso que
construímos sobre nós mesmos que os moçambicanos são um povo não
violento.
Podem
ocorrer linchamentos e o povo queimar e apedrejar até à morte
indiciados de crimes, mas isso não afeta nada. Nós somos e seremos
para sempre um “povo pacífico”. Esquecemos que todos os povos do
mundo são pacíficos, à partida. Os povos não são um produto
genético, imutável. São produto da História. E a História pode
facilmente converter os desejos de Paz em violência pessoal e
social. Os moçambicanos não são especialmente ordeiros. Também
não são especialmente desordeiros. São como todos os povos do
Mundo: respondem com violência quando se sentem violentados.
Porque
temos ideias preconceituosas sobre nós mesmos, ficamos surpreendidos
e não sabemos como reagir perante as repentinas irrupções de
violência. E ficamos satisfeitos, uma vez mais, em encontrar
culpados. Para alguns, a emergência desses fenômenos
violentos resulta apenas da mão escondida de conspiradores. Aqui
está, uma outra vez, a teoria dos culpados. Essa teoria do complô
pode, muitas vezes, ser verdadeira. Mas nem sempre os culpados são
os outros.
Na
realidade, um outro tópico que estamos debatendo neste encontro é
chamado “progresso social”. Esse assunto dava para muita
discussão. Não temos tempo aqui. Mas gostaria de abordar o
progresso social na perspectiva do tema central da violência. O que
eu quero dizer é que, muitas vezes, o chamado progresso pode ser uma
violência. Pode agir como uma agressão silenciosa contra sociedades
inteiras e, sobretudo, contra os mais pobres dessas sociedades.
O
escritor Bertolt Brecht dizia: “Do rio que tudo arrasta se diz
violento, mas ninguém diz que são violentas as margens que
comprimem esse mesmo rio”. Nós falamos da reação violenta de
cidadãos pobres contra um sistema que produz pobreza. É isto que
deve ficar claro.
Linchamentos
são uma resposta violenta contra uma violência maior que é o crime
como sistema de vida e a incapacidade de resposta do Estado perante a
crescente criminalidade. O linchamento popular é o rio que
transborda. A criminalidade de todos os dias são as margens que
comprimem esse rio.
As
manifestações contra os aumentos nos “chapas” em Maputo
traduzem um desespero: não é apenas um transporte urbano que falta
aos jovens. Aos nossos jovens falta um outro tipo de transporte que
os leve para o futuro, que os conduza para um sonho, que garanta uma
ligação com uma vida de promessas cumpridas.
O
verdadeiro desespero é ficar no apeadeiro da sua atual condição. O
desespero é saber que esse destino a que chamamos de futuro é
comandado por entidades que deixaram de olhar para nós como seres
humanos. E que um fosso progressivamente maior separa os que andam
nos chapas dos que circulam em luxuosas viaturas.
Achamos
inaceitável que alguém destrua os bens sociais como quem rasga as
páginas de um livro. Mas talvez isso suceda porque esse livro não
pode nunca ser nosso. Estamos rasgando as páginas dessa mesma Vida
que nos nega a nós como seres que anseiam ser felizes. A violência
de rua que vivemos em Maputo e em Chimoio não é má apenas porque é
violenta. Ela é negativa porque não produz respostas de organização
e de construção de alternativas sociais. Mas ela é sobretudo um
sinal revelador de doença. E nós temos de curar a doença e não
apenas os sintomas.
Não
se trata de uma responsabilidade do governo. Existirão, certamente,
questões de governação que é preciso escalpelizar. Não se pode
governar um país como se a política fosse um quintal e a economia
fosse um bazar. Ao avaliar um regime de governação precisamos, no
entanto, de ir mais fundo e saber se as questões não provêm do
regime mas do sistema e a cultura que esse sistema vai gerando.
Pode-se mudar o governo e tudo continuará igual se mantivermos
intacto o sistema de fazer economia, o sistema que administra os
recursos da nossa sociedade. Nós temos hoje gente com dinheiro. Isso
em si mesmo não é mau. Mas esses endinheirados não são ricos. Ser
rico é outra coisa. Ser rico é produzir emprego. Ser rico é
produzir riqueza. Os nossos novos-ricos são quase sempre predadores,
vivem da venda e revenda de recursos nacionais.
Afinal,
culpar o governo ou o sistema e ficar apenas por aí é fácil.
Alguém dizia que “governar é tão fácil que todos o sabem fazer
até ao dia em que são governo”. A verdade é que muitos dos
problemas que nós vivemos resultam da falta de resposta nossa como
cidadãos ativos. Resulta de apenas reagirmos no limite quando não
há outra resposta senão a violência cega. Grande parte dos
problemas resulta de ficarmos calados quando podemos pensar e falar.
Martin
Luther King dizia: “Mais grave que o ruído causado pelos homens
maus é o silêncio cúmplice dos homens bons que aceitam a
resignação do silêncio”. A vocês que recusam esse silêncio,
quero agradecer por esta iniciativa.
Mia
Couto, in E se
Obama fosse africano?
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