Em
1923 tive uma curiosa experiência. Havia voltado à minha casa em
Temuco. Era mais de meia-noite. Antes de me deitar abri as janelas de
meu quarto. O céu me deslumbrou. Todo o céu vivia povoado por uma
multidão pululante de estrelas. A noite estava recém-lavada e as
estrelas antárticas se desdobravam sobre minha cabeça. Senti-me
embargado por uma embriaguez de estrelas, celeste, cósmica. Corri à
minha mesa e escrevi de maneira delirante, como se recebesse um
ditado, o primeiro poema de um livro que teria muitos nomes e que
finalmente se chamaria El hondero entusiasta. Movia-me como se
estivesse andando em minhas verdadeiras águas.
No
dia seguinte li cheio de prazer meu poema noturno. Mais tarde, quando
cheguei a Santiago, o mago Alirio Oyarzún ouviu com admiração
aqueles versos. Com voz profunda me perguntou depois:
-
Estás seguro de que esses versos não têm influência de Sabat
Erscaty?
-
Creio que estou seguro. Escrevi-os num impulso.
Então
me ocorreu enviar meu poema ao próprio Sabat Erscaty, um grande
poeta uruguaio, agora injustamente esquecido. Nesse poeta havia visto
realizada minha ambição de uma poesia que englobasse não só o
homem mas também a natureza, as forças escondidas; uma poesia épica
que se confrontasse com o grande mistério do universo e também com
as possibilidades do homem. Comecei a me corresponder com ele.
Enquanto eu prosseguia e amadurecia minha obra, lia com muita atenção
as cartas que Sabat Erscaty dedicava a um jovem poeta tão
desconhecido.
Mandei
o poema daquela noite a Sabat Erscaty, para Montevidéu, e perguntei
se nele havia ou não influência de sua poesia. Respondeu-me logo
uma carta generosa: “Poucas vezes li um poema tão bem realizado,
tão magnífico, porém tenho que dizer-lhe: sim, há algo de Sabat
Erscaty em seus versos.”
Foi
um golpe noturno, de claridade, que até agora agradeço. Estive
muitos dias com a carta nos bolsos, amarfanhando-se até que se
desfez. Estavam em jogo muitas coisas. Mais que tudo me obsedava o
delírio estéril daquela noite. Havia caído em vão numa submersão
de estrelas, havia recebido em vão sobre meus sentidos aquela
tempestade austral. Estava enganado. Devia desconfiar da inspiração.
A razão devia guiar-me passo a passo pelos pequenos caminhos. Tinha
que aprender a ser modesto. Rasguei muitos originais, perdi outros.
Somente
dez anos depois reapareceria estes últimos, que foram publicados.
Com a carta de Sabat Erscaty terminou minha ambição cíclica de uma
poesia ampla, fechei a porta a uma eloqüência que para mim seria
impossível de seguir, reduzi deliberada-mente meu estilo e minha
expressão. Buscando meus impulsos mais simples, meu próprio mundo
harmônico, comecei outro livro de amor. O resultado foram os Veinte
Poemas.
Os
Veinte Poemas de Amor y una Canción Desesperada são um livro
doloroso e pastoril que contém minhas mais atormentadas paixões
adolescentes, misturadas com a natureza envolvente do sul de minha
pátria. É um livro que amo porque, apesar de sua aguda melancolia,
está presente nele o prazer de viver. Ajudaram-me a escrevê-lo um
rio e sua desembocadura: o rio Imperial. Os Veinte Poemas são
o romance de Santiago, com as ruas estudantis, a universidade e o
cheiro de madressilva do amor compartilhado.
Os
trechos de Santiago foram escritos entre a rua Echaurren e a avenida
Espanha e no interior do antigo edifício do Instituto Pedagógico,
mas o panorama são sempre as águas e as árvores do sul. Os cais da
“Canción Desesperada” são os velhos cais de Carahue e de Bajo
Imperial, os pranchões apodrecidos e os toros como cotos golpeados
pelo amplo rio. O esvoaçar de gaivotas era sentido e continua sendo
sentido naquela desembocadura.
Em
um esbelto e comprido bote abandonado, de não sei que barco
naufragado, li todo o Jean Cristophe e escrevi a “Canción
Desesperada”. Acima de minha cabeça o céu tinha um azul tão
violento como jamais vi outro igual. Eu escrevia no bote, escondido
na terra. Acho que não voltei a ser tão elevado e tão profundo
como naqueles dias. Acima o céu azul impenetrável. Em minhas mãos
o Jean Cristophe ou os versos nascentes de meu poema. Perto de mim,
tudo o que existiu e continuou existindo para sempre em minha poesia:
o ruído distante do mar, o grito dos pássaros selvagens e o amor
ardendo sem consumir-se como uma sarça imortal.
Sempre
me perguntaram quem é a mulher dos Veinte Poemas, pergunta difícil
de responder. As duas ou três que se entrelaçam nesta melancólica
e ardente poesia correspondem, digamos, a Marisol e a Marisombra.
Marisol é o idiio da província encantada com imensas estrelas
noturnas e olhos escuros como o céu úmido de Temuco. Ela surge com
sua alegria e sua beleza vivaz em quase todas as páginas, rodeada
pelas águas do porto e pela lua nascente sobre as montanhas.
Marisombra é a estudante da capital, boina cinzenta, olhos
suavíssimos, o cheiro constante de madressilva do errante amor
estudantil, do apaziguamento físico, dos apaixonados encontros nos
esconderijos da cidade.
Pablo
Neruda, in Confesso que vivi
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