quinta-feira, 6 de setembro de 2018

Veinte Poemas de Amor y una Canción Desesperada

Em 1923 tive uma curiosa experiência. Havia voltado à minha casa em Temuco. Era mais de meia-noite. Antes de me deitar abri as janelas de meu quarto. O céu me deslumbrou. Todo o céu vivia povoado por uma multidão pululante de estrelas. A noite estava recém-lavada e as estrelas antárticas se desdobravam sobre minha cabeça. Senti-me embargado por uma embriaguez de estrelas, celeste, cósmica. Corri à minha mesa e escrevi de maneira delirante, como se recebesse um ditado, o primeiro poema de um livro que teria muitos nomes e que finalmente se chamaria El hondero entusiasta. Movia-me como se estivesse andando em minhas verdadeiras águas.
No dia seguinte li cheio de prazer meu poema noturno. Mais tarde, quando cheguei a Santiago, o mago Alirio Oyarzún ouviu com admiração aqueles versos. Com voz profunda me perguntou depois:
- Estás seguro de que esses versos não têm influência de Sabat Erscaty?
- Creio que estou seguro. Escrevi-os num impulso.
Então me ocorreu enviar meu poema ao próprio Sabat Erscaty, um grande poeta uruguaio, agora injustamente esquecido. Nesse poeta havia visto realizada minha ambição de uma poesia que englobasse não só o homem mas também a natureza, as forças escondidas; uma poesia épica que se confrontasse com o grande mistério do universo e também com as possibilidades do homem. Comecei a me corresponder com ele. Enquanto eu prosseguia e amadurecia minha obra, lia com muita atenção as cartas que Sabat Erscaty dedicava a um jovem poeta tão desconhecido.
Mandei o poema daquela noite a Sabat Erscaty, para Montevidéu, e perguntei se nele havia ou não influência de sua poesia. Respondeu-me logo uma carta generosa: “Poucas vezes li um poema tão bem realizado, tão magnífico, porém tenho que dizer-lhe: sim, há algo de Sabat Erscaty em seus versos.”
Foi um golpe noturno, de claridade, que até agora agradeço. Estive muitos dias com a carta nos bolsos, amarfanhando-se até que se desfez. Estavam em jogo muitas coisas. Mais que tudo me obsedava o delírio estéril daquela noite. Havia caído em vão numa submersão de estrelas, havia recebido em vão sobre meus sentidos aquela tempestade austral. Estava enganado. Devia desconfiar da inspiração. A razão devia guiar-me passo a passo pelos pequenos caminhos. Tinha que aprender a ser modesto. Rasguei muitos originais, perdi outros.
Somente dez anos depois reapareceria estes últimos, que foram publicados. Com a carta de Sabat Erscaty terminou minha ambição cíclica de uma poesia ampla, fechei a porta a uma eloqüência que para mim seria impossível de seguir, reduzi deliberada-mente meu estilo e minha expressão. Buscando meus impulsos mais simples, meu próprio mundo harmônico, comecei outro livro de amor. O resultado foram os Veinte Poemas.
Os Veinte Poemas de Amor y una Canción Desesperada são um livro doloroso e pastoril que contém minhas mais atormentadas paixões adolescentes, misturadas com a natureza envolvente do sul de minha pátria. É um livro que amo porque, apesar de sua aguda melancolia, está presente nele o prazer de viver. Ajudaram-me a escrevê-lo um rio e sua desembocadura: o rio Imperial. Os Veinte Poemas são o romance de Santiago, com as ruas estudantis, a universidade e o cheiro de madressilva do amor compartilhado.
Os trechos de Santiago foram escritos entre a rua Echaurren e a avenida Espanha e no interior do antigo edifício do Instituto Pedagógico, mas o panorama são sempre as águas e as árvores do sul. Os cais da “Canción Desesperada” são os velhos cais de Carahue e de Bajo Imperial, os pranchões apodrecidos e os toros como cotos golpeados pelo amplo rio. O esvoaçar de gaivotas era sentido e continua sendo sentido naquela desembocadura.
Em um esbelto e comprido bote abandonado, de não sei que barco naufragado, li todo o Jean Cristophe e escrevi a “Canción Desesperada”. Acima de minha cabeça o céu tinha um azul tão violento como jamais vi outro igual. Eu escrevia no bote, escondido na terra. Acho que não voltei a ser tão elevado e tão profundo como naqueles dias. Acima o céu azul impenetrável. Em minhas mãos o Jean Cristophe ou os versos nascentes de meu poema. Perto de mim, tudo o que existiu e continuou existindo para sempre em minha poesia: o ruído distante do mar, o grito dos pássaros selvagens e o amor ardendo sem consumir-se como uma sarça imortal.
Sempre me perguntaram quem é a mulher dos Veinte Poemas, pergunta difícil de responder. As duas ou três que se entrelaçam nesta melancólica e ardente poesia correspondem, digamos, a Marisol e a Marisombra. Marisol é o idiio da província encantada com imensas estrelas noturnas e olhos escuros como o céu úmido de Temuco. Ela surge com sua alegria e sua beleza vivaz em quase todas as páginas, rodeada pelas águas do porto e pela lua nascente sobre as montanhas. Marisombra é a estudante da capital, boina cinzenta, olhos suavíssimos, o cheiro constante de madressilva do errante amor estudantil, do apaziguamento físico, dos apaixonados encontros nos esconderijos da cidade.
Pablo Neruda, in Confesso que vivi

Nenhum comentário:

Postar um comentário