“Isso
não é frio”, disse o porteiro Zé Pádua. “Frio mesmo é em
dezembro, janeiro… Aí Boston gela, mas mineiro se acostuma a tudo,
quase tudo.”
“Há
quanto tempo você mora em Boston?”
“Vinte
e oito anos e três meses”, ele disse, com precisão. “Meu pai
chegou primeiro, arranjou trabalho e depois trouxe os filhos. Minha
mãe teve seis: três moram aqui, três em Belo Horizonte.”
Fazia
um frio de lascar nessa noite de abril na Nova Inglaterra. Mais
acima, à direita do hotel, há um cemitério antigo, onde estão
enterrados mortos anônimos. Lápides inclinadas, esparsas, cravadas
num gramado perfeito, tão perfeito que parece irreal. De longe, as
peças de pedra espalhadas no gramado lembram uma instalação
contemporânea.
Boston
atrai turistas de todos os cantos, e também cientistas e
pesquisadores. Cambridge está logo ali, no outro lado do rio
Charles. Massachusetts é uma espécie de Atenas do nosso tempo, e Zé
Pádua lamenta não ter podido estudar em nenhuma universidade.
“Não
tive tempo para ficar sentadinho, lendo livros, queimando a cabeça.
Fui cozinheiro de restaurante mexicano, português, cabo-verdense.
Quando bate a saudade, preparo tutu, pão de queijo, galinha com
quiabo.”
“Quiabo
em Boston?”
“Quiabo
e taioba. Planto taioba no verão, dá que nem mato. Um imigrante faz
milagres. E, se você tiver sorte, ganha um dinheirinho.”
Pediu
licença para carregar as malas de um hóspede, entrou no hotel,
demorou um pouco, voltou sorridente.
“Ganhei
dez dólares”, disse Zé. “Aqui os hóspedes pagam pelo trabalho.
Uns oito anos atrás trabalhei num hotel de luxo no Brasil. A maioria
dos hóspedes não me dava nada, um ou outro me dava dois reais,
cinco no máximo. Um hóspede que paga seiscentos reais por uma
diária e dá dois de gorjeta… Não entendo isso. Queria ficar no
Brasil, mas não assim, ganhando mixaria e vendo políticos bandidos
rindo do povo.”
Passava
da meia-noite quando lhe perguntei quanto ganhava por dia. Tirou um
maço de cédulas do bolso e sorriu.
“Hoje
ganhei uns cento e vinte dólares. E ainda recebo o fixo, por semana.
Dizem que no sul dos Estados Unidos os negros penam, mas aqui é um
pouco diferente. Se você trabalhar, você ganha. Pode ser negro,
asiático, árabe, hispânico. No começo foi muito difícil, passei
cinco anos vivendo como um bicho. Dormia pouco e morria de saudade de
Minas, de minha mãe e dos meus irmãos.”
“Seus
pais não moram aqui?”
“Meu
pai morreu em 1999, está enterrado em Boston.”
“E
sua mãe?”
“Vem
e volta. Mãe de muitos filhos tem coração dividido. Tenho
cidadania norte-americana e consegui um green card pra ela. Mas
quando chega aqui, fica quietinha, diz que não tem amigos, não tem
com quem conversar, sente saudades dos filhos que estão em Minas,
acha tudo triste. E dois meses depois ela me pede pra comprar a
passagem de volta.”
A
essa hora da madrugada, só as luzes da rua Newbury brilham a uns cem
metros do hotel. Uma caminhonete com placa de Ohio estaciona e Zé
Pádua se apressa a abrir a bagageira e carregar as malas.
Voltou
esfregando as mãos: estava ansioso para viajar a Belo Horizonte. Ele
e os dois irmãos vão passar duas semanas de julho em Minas.
“Minha
velha vai festejar os oitenta anos no dia 5 de julho e quer todos os
filhos pertinho dela. O que a gente não faz por nossa mãe? É ou
não é? Domingo vou tirar folga e convidei uns amigos pra comer tutu
de feijão com lombinho. Você está convidado. Vai conhecer uma
casinha de pobre, longe dessa Boston que a gente está vendo. Casa
mineira, com boa cachaça, música e conversa. Você vem?”
Milton
Hatoum, in Um solitário à espreita
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