quarta-feira, 5 de setembro de 2018

Sueson Birea

Um bairro popular, uma rua como outras e ao fundo uma casa com jardim. São dois andares de casa velha com divisões espaçosas e tectos altos. Cinco quartos, uma sala de jantar, uma cozinha, duas varandas e uma sala com livros. O jardim é quadrado, delimitado por um muro baixo e sebes bem tratadas. No meio do jardim, descaído sobre a esquerda da casa, está um pequeno moinho vermelho que chia quando quer.
A tarde é fria e cinzenta, como muitas tardes de Julho em Sueson Birea. O pequeno Jorge não pensa no frio, está deitado sobre a erva e olha para as formigas. Ninguém se atreveria a adivinhar o que pensa. Norah, a irmã, corre pelo jardim atrás de um animal que ele inventou. Jorge gosta de inventar animais, Norah de correr atrás deles. Um cão de três pernas com bigodes de gato e rabo de burro, quando está longe sopra como o vento, de perto não há quem o saiba ouvir. Norah admira o irmão e, por mais que tente, não vê o que ele vê. É talvez dos óculos que ele usa, tem mais olhos do que ela e vê coisas que mais ninguém consegue ver.
De uma janela do primeiro andar, a avó Fanny observa o jardim e os netos. Uma estranha sensação percorre-lhe o corpo, como um arrepio ao contrário, um conforto descontrolado. É uma avó viúva, cheia de histórias que os netos gostam de ouvir. Os netos ocupam-lhe vazios deixados pelo marido, um homem que morreu numa guerra oblíqua, uma guerra sem ideais ou talvez com demasiados; uma guerra de homens que querem contra homens que também querem, como são sempre as guerras. Em breve soarão as quatro horas e a avó Fanny descerá as escadas para anunciar o chá que tomarão juntos à mesa da cozinha.
Jorge vai olhando as formigas e faz traços num caderno. Sempre que aprende algo novo, Jorge faz traços no caderno. A avó chama-os e o cão de três patas foge para longe. Norah fica triste por alguns segundos, mas depois pensa no lanche e esquece-se. Corre com o irmão para dentro e sentam-se à mesa. Enquanto comem, a avó Fanny põe-se ao lume e canta baixinho uma canção de guerra e de homens perdidos.
Do outro lado da rua, Roberto saiu de casa para não ouvir uma discussão. Tem vestido um casaco mal remendado e encolhe-se a cada rajada de vento. Senta-se no passeio e olha em frente, fixando o moinho vermelho da casa de Jorge. Segue Norah com os olhos sem perceber a que brinca e depois vê a avó Fanny abrir a porta e chamar os netos. Roberto sente o peito apertado e os ombros que tremem. Frio por dentro e frio por fora. De sua casa chegam gritos com o vento, gritos que não o deixam pensar em nada, nem sequer no que sente, muito menos nisso.
O bairro é popular, a rua banal e há uma única casa com jardim.
Nuno Camarneiro, in No meu peito não cabem pássaros

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