O mau
tempo em Roma
me fez perder a conexão do voo em Lisboa, mas me permitiu passar uma
tarde e uma noite nessa cidade.
Peguei
o metrô e desci na estação de Baixa-Chiado, onde vi outros
turistas chineses. Digo outros porque vi chineses às pencas em
Veneza, onde cantavam nas ruas estreitas e também nas gôndolas
pretas e douradas que navegam nos canais que serpenteiam a cidade.
Chineses de todas as idades, alegres e com grana, cantando em voz
alta uma canção que só eles entendiam. Esse canto de júbilo
ecoava nas ilhas do Adriático e parecia dizer que o século XXI será
predominantemente chinês.
Pensei
isso enquanto observava numa livraria veneziana um mapa com a rota
das viagens de Marco Polo, cuja aventura só pode ser igualada à do
seu quase contemporâneo Ibn Battuta, o marroquino que percorreu mais
de 120 mil quilômetros por regiões e cidades de África, Ásia e
Oriente Médio.
E eis
que, em plena praça Camões, depois de olhar para a fachada da
Manteigaria União, vi um bonde cheio de chineses exultantes,
cantando outras canções, ou quem sabe as mesmas que eu ouvira em
Veneza. Acenavam para mim, mas logo percebi que o aceno era dirigido
a outros chineses sorridentes, sentados ao lado do quiosque da praça.
O bom
humor desses turistas contrastava com o desânimo dos portugueses.
Numa conversa com jovens estudantes lisboetas, um deles me disse que
a crise econômica não é apenas uma crise, e sim a falência de
todo um sistema que havia degenerado numa espécie de cassino
planetário, onde investidores invisíveis movimentam bilhões de
dólares e arrasam a economia de vários países.
Uma
morena tatuada com flores e corações nos braços disse que 15% dos
jovens europeus não encontram trabalho:
“Mais
de oitenta mil jovens portugueses deixam anualmente o país.
Abandonam os estudos e a família e vão viver na Alemanha,
Inglaterra, França e também no Brasil…”
“Pois
olha: estamos à deriva”, disse o mais velho do grupo. “Vivemos
entre o mar e o humor da sra. Merkel.”
“Entre
o oceano e o abismo”, corrigiu a jovem tatuada, mostrando uma
manchete do jornal Público:
“Governo propõe corte de 10% nos subsídios de desemprego mais
baixos”.
Abro o
jornal e leio uma frase na faixa de protesto em uma manifestação
recente: “Mãe, estou no desemprego”.
“Resta-nos
a mãe”, sorriu a moça, olhando as enormes letras pretas escritas
na faixa. “Resta-nos a dignidade de estarmos vivos, de sermos
portugueses.”
Penso
na gastança e na ganância dos bilionários e dos predadores de Wall
Street, nos fabricantes de armas e nos senhores das guerras, na
miséria infinita da África, América Latina e Ásia, na bolha
consumista brasileira que pode espocar a qualquer momento. Penso na
nossa euforia, que pode ser efêmera. E quase ao mesmo tempo penso
nos países nórdicos, onde o capitalismo tende ao socialismo, onde a
desigualdade social é mínima e o desemprego é quase um pecado
mortal ou uma vergonha do Estado.
Agora
todos estão calados, e quando a moça abre os braços para acolher
um amigo, as flores e o coração crescem na pele morena. Dou adeus
aos jovens da praça Camões, pego o bonde 28 e desço no Largo das
Portas do Sol; contemplo o belo casario de Alfama, e essa paisagem me
remete ao pouco que restou do centro histórico do Rio, de Salvador e
Belém. Na outra margem do Tejo, as primeiras luzes de Almada. No
meio do rio, um cargueiro da cor de ferrugem esfuma-se no anoitecer.
Ouço uma voz feminina, sotaque mineiro, e pergunto de onde ela é.
“De
Araçuaí, Vale do Jequitinhonha”, ela disse, com voz mansa. “De
Araçuaí Riobaldo trouxe uma pedra de topázio para dar a Diadorim.”
Estudou
literatura em Belo Horizonte e há dois anos mora e trabalha em
Portugal. Disse que gosta muito de Lisboa, mas sente saudade do
Brasil.
“Você
quer voltar para lá?”
“Quero
e não quero”, respondeu. “A vida aqui está difícil, muitos
brasileiros estão voltando, mas eu me apaixonei por um português e
você sabe… Essas coisas do coração.”
No
centro de um pequeno Largo de Alfama, uma palmeira solitária.
Milton Hatoum,
in Um
solitário à espreita
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