Ele
cumpriu a promessa. Veio visitar-me de novo. Veio elegantemente
trajado, dessa vez usando um blazer vermelho, por conselho de um
famoso figurinista. Depois dos abraços iniciais, ele relembrou o fim
da nossa conversa anterior, quando disse que as pessoas que se dizem
endemoninhadas não estão possuídas pelo Diabo coisa nenhuma. Estão
é possuídas pelo seu próprio traseiro...
“Ah!
O reverso da palavra! Os que não entendem poesia leem poesia do
mesmo jeito que leem bula de remédio, em que cada palavra tem de
significar precisamente o que o dicionário diz. Já os poetas sabem
que cada palavra significa uma outra coisa. Se um poema dissesse que
um peixe engoliu um homem que ficou três dias dentro dele e até
escreveu poesia durante esse tempo, você pensaria que isso aconteceu
de verdade ou que é literatura, realismo fantástico?
“Coisa
que Deus gosta de fazer é cozinhar. Mas a culinária divina tem uma
peculiaridade: Deus mistura poemas com a comida. Comida que não tem
poema misturado não é coisa de Deus. Pois não é isso que é a
eucaristia, comida misturada com palavras?
“Pois
Deus resolveu oferecer um banquete de palavras para os homens e
desandou a escrever poemas lindos. E pediu minha opinião.
“‘O
que é que você acha disso? Será que os homens vão gostar?’
“Eu
provei e gostei, mas ponderei: ‘Senhor, banquete maravilhoso. Mas é
preciso não se enganar. Os homens vão comer? Claro que vão comer.
Vão comer por quê? Porque têm um agudo senso de discriminação,
porque são sábios, porque sabem diferenciar literatura boa de
literatura ruim? Não é nada disso. Vão comer porque — lamento
dizer isso — frequentemente o seu gosto não se diferencia do gosto
dos porcos. Eles não sabem distinguir qualidade de quantidade.
Falta-lhes o dom da discriminação. Comem tudo, engolem tudo,
engordam, quanto mais melhor... Acham que, se está escrito no livro,
é palavra de Deus... E aí o senhor vai sorrir enganado pensando que
eles realmente perceberam a finura da sua culinária literária. Já
viu as revistas que eles devoram? E as revistas pornô? E os
livrinhos piedosos, melado de rapadura de tão doces e bobos. Senhor,
o povo come qualquer coisa e gosta...’.
“‘É
preciso reconhecer que Dostoiévski estava certo: os homens não
estão atrás de Deus por amor; o que eles querem mesmo são os
milagres...’
“Deus
então me perguntou: ‘Que devo fazer? Quero convidar para o meu
banquete só aqueles que têm o gosto refinado para que possam se
deleitar com a beleza dos meus poemas’.
“Aí
eu respondi: ‘É simples. Vamos misturar os seus poemas com
literatura vagabunda, sem sentido, boba, essas revistas que ficam em
pilhas nos consultórios médicos e dentários, mais coisas de
horror, de absurdo, de autoajuda... Vamos pôr todos os pratos num
bufê imenso, os poemas divinos com os pratos que eu, o Testador, vou
inventar. Misturamos tudo e observamos. Aqueles que comerem tudo e
gostarem de tudo — acham que assim estão agradando a Deus —,
esses são os tolos. Incapazes de distinguir o belo das tolices. Mas
aqueles que forem seletivos, que não aceitarem tudo, que cheirarem e
separarem, aqueles que tiverem a sensibilidade para dizer: ‘Isso é
poesia divina e isso é literatura de terceira categoria’, esses
merecem ser convidados para o banquete final’.
“Deus
ponderou a minha sugestão e pediu-me então que escrevesse umas
estórias para misturar com os seus poemas. Foi o que fiz. Que isso
que estou dizendo é verdade está confirmado pelo próprio Jesus, na
parábola do trigo e do joio. Um homem plantou um campo de trigo.
Veio um inimigo de noite e semeou joio no meio do trigo. Quando os
empregados viram o joio nascendo ficaram horrorizados e puseram-se a
arrancá-lo. O dono do campo ordenou que parassem. Que o trigo e o
joio crescessem misturados. Assim, usando as palavras do próprio
Jesus, os textos ditos sagrados são uma mistura de trigo e joio.
Quem pegar o joio pensando que é trigo é um tolo. Vai ficar de fora
do banquete...
“Na
próxima vez vou contar a estória que inventei sobre o primeiro
assassinato da história da humanidade. E vou adiantar: o seu tema é
uma querela sobre a dieta divina...”
Rubem
Alves,
in Pimentas: para
provocar um incêndio, não é preciso fogo
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