quarta-feira, 5 de setembro de 2018

Conversa com o Diabo III

Ele cumpriu a promessa. Veio visitar-me de novo. Veio elegantemente trajado, dessa vez usando um blazer vermelho, por conselho de um famoso figurinista. Depois dos abraços iniciais, ele relembrou o fim da nossa conversa anterior, quando disse que as pessoas que se dizem endemoninhadas não estão possuídas pelo Diabo coisa nenhuma. Estão é possuídas pelo seu próprio traseiro...
Ah! O reverso da palavra! Os que não entendem poesia leem poesia do mesmo jeito que leem bula de remédio, em que cada palavra tem de significar precisamente o que o dicionário diz. Já os poetas sabem que cada palavra significa uma outra coisa. Se um poema dissesse que um peixe engoliu um homem que ficou três dias dentro dele e até escreveu poesia durante esse tempo, você pensaria que isso aconteceu de verdade ou que é literatura, realismo fantástico?
Coisa que Deus gosta de fazer é cozinhar. Mas a culinária divina tem uma peculiaridade: Deus mistura poemas com a comida. Comida que não tem poema misturado não é coisa de Deus. Pois não é isso que é a eucaristia, comida misturada com palavras?
Pois Deus resolveu oferecer um banquete de palavras para os homens e desandou a escrever poemas lindos. E pediu minha opinião.
“‘O que é que você acha disso? Será que os homens vão gostar?’
Eu provei e gostei, mas ponderei: ‘Senhor, banquete maravilhoso. Mas é preciso não se enganar. Os homens vão comer? Claro que vão comer. Vão comer por quê? Porque têm um agudo senso de discriminação, porque são sábios, porque sabem diferenciar literatura boa de literatura ruim? Não é nada disso. Vão comer porque — lamento dizer isso — frequentemente o seu gosto não se diferencia do gosto dos porcos. Eles não sabem distinguir qualidade de quantidade. Falta-lhes o dom da discriminação. Comem tudo, engolem tudo, engordam, quanto mais melhor... Acham que, se está escrito no livro, é palavra de Deus... E aí o senhor vai sorrir enganado pensando que eles realmente perceberam a finura da sua culinária literária. Já viu as revistas que eles devoram? E as revistas pornô? E os livrinhos piedosos, melado de rapadura de tão doces e bobos. Senhor, o povo come qualquer coisa e gosta...’.
“‘É preciso reconhecer que Dostoiévski estava certo: os homens não estão atrás de Deus por amor; o que eles querem mesmo são os milagres...’
Deus então me perguntou: ‘Que devo fazer? Quero convidar para o meu banquete só aqueles que têm o gosto refinado para que possam se deleitar com a beleza dos meus poemas’.
Aí eu respondi: ‘É simples. Vamos misturar os seus poemas com literatura vagabunda, sem sentido, boba, essas revistas que ficam em pilhas nos consultórios médicos e dentários, mais coisas de horror, de absurdo, de autoajuda... Vamos pôr todos os pratos num bufê imenso, os poemas divinos com os pratos que eu, o Testador, vou inventar. Misturamos tudo e observamos. Aqueles que comerem tudo e gostarem de tudo — acham que assim estão agradando a Deus —, esses são os tolos. Incapazes de distinguir o belo das tolices. Mas aqueles que forem seletivos, que não aceitarem tudo, que cheirarem e separarem, aqueles que tiverem a sensibilidade para dizer: ‘Isso é poesia divina e isso é literatura de terceira categoria’, esses merecem ser convidados para o banquete final’.
Deus ponderou a minha sugestão e pediu-me então que escrevesse umas estórias para misturar com os seus poemas. Foi o que fiz. Que isso que estou dizendo é verdade está confirmado pelo próprio Jesus, na parábola do trigo e do joio. Um homem plantou um campo de trigo. Veio um inimigo de noite e semeou joio no meio do trigo. Quando os empregados viram o joio nascendo ficaram horrorizados e puseram-se a arrancá-lo. O dono do campo ordenou que parassem. Que o trigo e o joio crescessem misturados. Assim, usando as palavras do próprio Jesus, os textos ditos sagrados são uma mistura de trigo e joio. Quem pegar o joio pensando que é trigo é um tolo. Vai ficar de fora do banquete...
Na próxima vez vou contar a estória que inventei sobre o primeiro assassinato da história da humanidade. E vou adiantar: o seu tema é uma querela sobre a dieta divina...”
Rubem Alves, in Pimentas: para provocar um incêndio, não é preciso fogo

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