No
despertar do terceiro milênio, a humanidade acorda, distende os
membros e esfrega os olhos. Restos de algum pesadelo horrível ainda
atravessam sua mente. “Havia algo como arame farpado, e nuvens
enormes em forma de cogumelo. Ah, bem, foi apenas um sonho ruim.” A
humanidade vai até o banheiro, lava o rosto, examina as rugas diante
do espelho, prepara uma xícara de café e abre o jornal. “O que
será que nos espera hoje?”
Durante
milhares de anos a resposta a essa questão não se alterou. Os
mesmos três problemas preocupavam as pessoas da China no século XX,
da Índia medieval e do antigo Egito. Fome, pestes e guerra sempre
estiveram entre as principais dificuldades enfrentadas. Geração
após geração os humanos rezaram para todos os anjos, deuses e
santos e inventaram um sem-número de ferramentas, instituições e
sistemas sociais — mas seguem morrendo aos milhões de inanição,
epidemias e violência. Muitos pensadores e profetas concluíram que
a fome, a peste e a guerra deviam fazer parte do plano cósmico de
Deus ou de nossa natureza imperfeita, e nada a não ser o fim dos
tempos nos livraria delas.
Mas
no alvorecer do terceiro milênio a humanidade chegou a uma incrível
constatação. A maior parte das pessoas raramente pensa sobre isso,
porém nas últimas poucas décadas demos um jeito de controlar a
fome, as pestes e a guerra. É evidente que esses problemas não
foram completamente resolvidos, no entanto foram transformados de
forças incompreensíveis e incontroláveis da natureza em desafios
que podem ser enfrentados. Não precisamos rezar para nenhum deus ou
santo para que nos salvem deles. Sabemos bem o que precisa ser feito
para evitar a fome, as pestes e a guerra — e geralmente somos
bem-sucedidos ao fazê-lo.
É
verdade que ainda se verificam fracassos dignos de nota; mas, quando
deparamos com eles, não mais damos de ombros e dizemos “Bem, é
assim que as coisas funcionam em nosso mundo imperfeito”, ou “Que
seja feita a vontade de Deus”. Sim, quando a fome, as pestes ou a
guerra saem de nosso controle, costumamos achar que alguém deve ter
se equivocado, estabelecemos uma comissão de inquérito e prometemos
que na próxima vez faremos melhor. E isso efetivamente funciona.
Essas calamidades de fato acontecem cada vez com menos frequência.
Pela primeira vez na história, hoje morrem mais pessoas que comeram
demais do que de menos; mais pessoas morrem de velhice do que de
doenças infecciosas; e mais pessoas cometem suicídio do que todas
as que, somadas, são mortas por soldados, terroristas e criminosos.
No início do século XXI, o ser humano médio tem muito mais
probabilidade de morrer empanturrado no McDonald’s do que de seca,
de Ebola, ou num ataque da Al-Qaeda.
Por
isso, apesar de presidentes, executivos e generais ainda terem suas
agendas preenchidas por crises econômicas e conflitos militares, na
escala cósmica da história o gênero humano pode erguer os olhos e
começar a perscrutar novos horizontes. Se realmente a fome, a peste
e a guerra estão sob controle, o que irá substituí-las como
prioridade na agenda humana? Como bombeiros em um mundo sem
incêndios, o gênero humano no início do século XXI deve fazer a
si mesmo uma pergunta sem precedente: o que vamos fazer conosco? Num
mundo saudável, próspero e harmonioso, o que vai exigir nossa
atenção e nossa engenhosidade? Essa pergunta torna-se duplamente
urgente em razão dos novos e imensos poderes que a biotecnologia e a
tecnologia da informação estão nos oferecendo. O que vamos fazer
com todo esse poder?
Antes
de responder a essa pergunta, precisamos nos estender um pouco mais
sobre a fome, a peste e a guerra. A informação de que as
controlamos pode chocar muitas pessoas, para quem essa alegação
pode soar ultrajante, extremamente ingênua ou talvez insensível. E
quanto aos bilhões de pessoas que sucateiam suas vidas sobrevivendo
com menos de dois dólares por dia? E quanto à crise da aids na
África, ou as guerras que estão sendo travadas na Síria e no
Iraque? Para abordar esses temas preocupantes, examinemos de perto o
mundo no início do século XXI, antes de explorar a agenda humana
para as próximas décadas.
Yuval
Noah Harari,
in Homo
Deus: Uma breve história do amanhã
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