segunda-feira, 25 de junho de 2018

Cumprimentos ao chef


O relacionamento de um bom gourmet com um bom restaurante deve ser discreto. Os dois não se devem entender, devem se subentender. Deve haver um diálogo de sutilezas através do qual o bom gourmet manifesta a sua satisfação com o restaurante e o restaurante manifesta a sua com o bom gourmet. Os dois se amam, mas sem arrebatamento. Um bom gourmet não pode entrar no seu restaurante preferido como quem entra no boteco de todos os dias, por exemplo. Não pode bater no balcão e gritar:
Salta um crème d’asperges caprichado!
E ainda derramar um pouco de creme no chão, para o santo.
Da mesma maneira, não é admissível que o maître e todos os garçons corram para receber o bom gourmet na porta e troquem com ele abraços e empurrões bem-humorados.
Discrição. O maître deve registrar a presença do bom gourmet com um meio sorriso. Um sorriso inteiro seria uma extravagância. Não pode gritar para o fundo do salão:
Tira essa gentinha aí da mesa oito que chegou o Dr. Fulano!
Deve chamar um garçom e dizer no seu ouvido:
Tira essa gentinha aí da mesa oito que chegou o Dr. Fulano. Discretamente.
O garçom conhecido deve demonstrar sua atenção especial para com o bom gourmet de pequenas maneiras. Jamais limpando o assento da cadeira com o guardanapo, puxando uma conversa que vai longe (“e o nosso time, doutor?”) ou apertando as bochechas do bom gourmet carinhosamente. Deve, apenas, estar atento ao chamado do bom gourmet enquanto ignora todos os sinais desesperados das outras mesas.
O diálogo do bom gourmet com o sommelier deve ser num código particular, aperfeiçoado através de anos de bom convívio. Em vez de dizer o que vai comer e esperar que o sommelier sugira o vinho apropriado, o bom gourmet deve lhe dizer o que espera do vinho, de acordo com a sua disposição no momento. Deve esfregar os dedos, como quem tenta destilar do ar a palavra certa.
A noite hoje pede alguma coisa assim, como direi... civilizada, mas com um substrato selvagem, como certas espanholas. Um vinho que não se entregue todo aos primeiros goles. Um vinho com epílogo, é isso. Algo zombeteiro. Mas não irreverente e cheio de si, como aquele da semana passada. Você sabe.
Posso sugerir um Rez-de-Chaussée, ano ímpar, das Caves de Mourville?
Experimentemos. Mas se ele não se comportar direito será expulso da mesa em desgraça.
É no seu relacionamento com o chef, no entanto, que o gourmet mostra que é bom. Depois de um jantar a seu gosto, deve premiar o cozinheiro com a frase clássica, transmitida ao maître, na saída, junto com a gorjeta:
Meus cumprimentos ao chef.
Mesmo depois de uma refeição excepcional, o bom gourmet deve resistir à tentação de invadir a cozinha aos gritos de:
Quero beijar o chef! Preciso beijar esse chef!
Discretos cumprimentos bastam. No caso de a refeição não estar à altura das suas melhores expectativas, o bom gourmet deve apenas perguntar:
Algum problema com o chef? Para mim você pode contar.
O bom gourmet pode ser tolerante:
Diga ao chef que a mousse de salmão redimiu o resto, mas ali, ali.
Pode ser irônico:
Diga ao chef que senti o seu dedo no suflê. Ele deve ser mais cuidadoso com facas...
Crítico, mas construtivo:
Diga ao chef que a sua sauce périgord ainda pode ser salva. Precisamos conversar.
Ameaçador:
Diga ao chef que, da próxima vez que eu tiver de devolver para a cozinha uma blanquette de veau como a de hoje, meus advogados a acompanharão.
Sentido:
Pergunte ao chef se foi alguma coisa que eu lhe fiz...
Enigmático:
Meus cumprimentos ao chef do restaurante ao lado.
Agressivo:
Minhas desculpas ao chef. Pensei que seu filet en croûte fosse uma granada e o joguei pela janela.
Bem-humorado:
Avise ao chef que a sua béchamel passou do ponto e é para ele ir buscá-la no fim da linha.
Patético:
Meu adeus para sempre ao chef.
Ou então radical:
Diga ao chef que o espero na saída!
Luís Fernando Veríssimo, in A mesa voadora

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