O
relacionamento de um bom gourmet com um bom restaurante deve ser
discreto. Os dois não se devem entender, devem se subentender. Deve
haver um diálogo de sutilezas através do qual o bom gourmet
manifesta a sua satisfação com o restaurante e o restaurante
manifesta a sua com o bom gourmet. Os dois se amam, mas sem
arrebatamento. Um bom gourmet não pode entrar no seu restaurante
preferido como quem entra no boteco de todos os dias, por exemplo.
Não pode bater no balcão e gritar:
— Salta
um crème d’asperges
caprichado!
E
ainda derramar um pouco de creme no chão, para o santo.
Da
mesma maneira, não é admissível que o maître e todos os garçons
corram para receber o bom gourmet na porta e troquem com ele abraços
e empurrões bem-humorados.
Discrição.
O maître deve
registrar a presença do bom gourmet com um meio sorriso. Um sorriso
inteiro seria uma extravagância. Não pode gritar para o fundo do
salão:
— Tira
essa gentinha aí da mesa oito que chegou o Dr. Fulano!
Deve
chamar um garçom e dizer no seu ouvido:
— Tira
essa gentinha aí da mesa oito que chegou o Dr. Fulano.
Discretamente.
O
garçom conhecido deve demonstrar sua atenção especial para com o
bom gourmet de pequenas maneiras. Jamais limpando o assento da
cadeira com o guardanapo, puxando uma conversa que vai longe (“e o
nosso time, doutor?”) ou apertando as bochechas do bom gourmet
carinhosamente. Deve, apenas, estar atento ao chamado do bom gourmet
enquanto ignora todos os sinais desesperados das outras mesas.
O
diálogo do bom gourmet com o sommelier
deve ser num código particular, aperfeiçoado através de anos de
bom convívio. Em vez de dizer o que vai comer e esperar que o
sommelier sugira o vinho apropriado, o bom gourmet deve lhe dizer o
que espera do vinho, de acordo com a sua disposição no
momento. Deve esfregar os dedos, como quem tenta destilar do ar a
palavra certa.
— A noite hoje
pede alguma coisa assim, como direi... civilizada, mas com um
substrato selvagem, como certas espanholas. Um vinho que não se
entregue todo aos primeiros goles. Um vinho com epílogo, é isso.
Algo zombeteiro. Mas não irreverente e cheio de si, como aquele da
semana passada. Você sabe.
— Posso sugerir
um Rez-de-Chaussée, ano ímpar, das Caves de Mourville?
— Experimentemos.
Mas se ele não se comportar direito será expulso da mesa em
desgraça.
É no seu
relacionamento com o chef, no entanto, que o gourmet mostra que é
bom. Depois de um jantar a seu gosto, deve premiar o cozinheiro com a
frase clássica, transmitida ao maître, na saída, junto com a
gorjeta:
— Meus
cumprimentos ao chef.
Mesmo depois de uma
refeição excepcional, o bom gourmet deve resistir à tentação de
invadir a cozinha aos gritos de:
— Quero beijar o
chef! Preciso beijar esse chef!
Discretos
cumprimentos bastam. No caso de a refeição não estar à altura das
suas melhores expectativas, o bom gourmet deve apenas perguntar:
— Algum problema
com o chef? Para mim você pode contar.
O bom gourmet pode
ser tolerante:
— Diga ao chef
que a mousse de salmão redimiu o resto, mas ali, ali.
Pode ser irônico:
— Diga ao chef
que senti o seu dedo no suflê. Ele deve ser mais cuidadoso com
facas...
Crítico, mas
construtivo:
— Diga ao chef
que a sua sauce périgord ainda pode ser salva. Precisamos
conversar.
Ameaçador:
— Diga ao chef
que, da próxima vez que eu tiver de devolver para a cozinha uma
blanquette de veau como a de hoje, meus advogados a
acompanharão.
Sentido:
— Pergunte ao
chef se foi alguma coisa que eu lhe fiz...
Enigmático:
— Meus
cumprimentos ao chef do restaurante ao lado.
Agressivo:
— Minhas
desculpas ao chef. Pensei que seu filet en croûte fosse uma
granada e o joguei pela janela.
Bem-humorado:
— Avise ao chef
que a sua béchamel passou do ponto e é para ele ir buscá-la
no fim da linha.
Patético:
— Meu adeus para
sempre ao chef.
Ou então radical:
— Diga ao chef
que o espero na saída!
Luís Fernando
Veríssimo, in A mesa voadora
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