“Você
quer me sufocar de tanto desejo?, perguntou o pintor, sorrindo.
Pôs
o celular no bolso da calça e me disse: “Era ela. Será que amanhã
vai me dar o cano?”.
Donoso
pegou a desempenadeira de aço e passou a massa num trecho da parede.
Reclamou do tempo feio e da umidade: “Hoje não dá pra pintar.
Essa massa não vai secar tão cedo…”.
Anoitecia.
Mas desde o meio da tarde, quando ele começou a pintar as janelas,
fazia uma pausa para dar uma olhada no celular.
Não
gosto de cheiro de tinta, mas gosto de ouvir histórias.
Tinha
doze anos quando vim para cá com meu tio, disse Donoso. A gente
morava num quarto de uma pensão na rua Capri e eu ajudava meu tio a
carregar tralhas, ele trabalhava numa transportadora. Seis anos
assim, no muque, até o dia em que o dono da casa fechou a pensão e
despejou todo mundo. Meu tio se esquentou e decidiu voltar para
Pernambuco. Eu embirrei: quis ficar em São Paulo, não queria cuidar
de bode. Saudade é coisa boa pra quem tem pai e mãe, e eu não
tinha nenhum dos dois. Meu tio olhou bem nos meus olhos: “Você vai
ficar aqui, Donoso? E se você se perder?”. Eu respondi: “Mais
perdido do que já estou?”.
Ele
me deu uns cruzeiros, pouca coisa, era um homem sovina, não abria a
mão nem pra dar adeus. E foi embora. Eu penei. Morava num matagal
cheio de pés de mamona, onde hoje é o shopping Eldorado. De manhã
eu batia perna atrás de serviço, comia pão seco, às vezes um
padeiro me dava o último salgadinho da noite. O senhor não sabe o
que é a fome. Eu, modestamente, sei. Saudade mesmo eu senti do meu
quarto da rua Capri, porque era duro dormir no matagal e tomar banho
com água gelada no inverno. Uma tarde entrei num boteco do Butantã
pra pedir um quibe, o dono me deu uma vassoura e disse: “Pode
varrer tudo”. Varri tudo e ainda passei um pano no chão e lavei a
louça; depois bebi muita água da torneira; bebi para matar a fome,
e não a sede. O português me deu dois quibes e uns trocados.
Continuei a andar por aí, procurando meu destino. Mas o destino não
é o acaso? Andei até a Vila Sônia, onde vi umas casinhas em
construção, quase prontas. Perguntei ao mestre de obras se ele
precisava de um pintor. “Tem prática?”, ele perguntou. “Tenho
sim”, menti. “Então comece a passar cal naquele muro”, disse o
mestre. Passei cal no muro e ouvi do mestre: “Agora pinte as
paredes daquela casa”. Disfarcei, dei uma olhada no trabalho de
outro pintor e voltei para as minhas paredes. O que a gente não
conhece, a gente imita. Não entendia nada de mistura de tinta,
quantidade de água, acabamento, mas trabalhei com capricho, usando
uma brocha de piaçaba, brocha de náilon não existia naquela época.
Fui contratado, tomei gosto pela pintura, dois anos depois eu já
trabalhava sozinho, tinha minha freguesia. A desgraça é que não
sabia ler nem escrever, e me embaralhava com os números, não
conseguia fazer orçamento. Comecei de novo: aprendi a ler, a
calcular, nunca mais fui enganado… O tempo passa rápido, a gente
nem percebe… Casei três vezes, tenho quatro filhos, faz tempo que
estou separado. Decidi ficar quieto, sozinho, já sofri muito, não
vale a pena se chatear com mulher. Mas a vida tem surpresas, e eu me
apaixonei por uma moça… Já passei dos sessenta anos, ela
completou trinta. A gente se encontrou num ônibus, e eu logo me
encantei com a voz dela… Língua de veludo, se o senhor ouvisse.
Por isso ela é telefonista, mas o salário é uma mixaria, ela ganha
por mês o que eu cobro pra pintar duas janelinhas e quatro paredes.
Jurou que ia me telefonar, mas jurou falso. Sumiu por dois meses.
Agora me ligou para pedir desculpa. Perguntei se ela queria me
sufocar de tanto desejo. Riu de mim. Disse: “Amanhã te explico o
que aconteceu, amor”. Que voz! E o diabo é que ontem mesmo sonhei
com ela… Você passa mais de duas horas dentro de um ônibus lotado
e acaba dormindo de pé, que nem cavalo. Sonhei que subia numa escada
para pintar o teto de um cinema e de repente o teto sumiu e lá no
alto apareceu a minha cidade natal, pequena e pobre, do jeito que
conheci quando era menino. Aí pintei de azul o céu do meu vilarejo.
E nesse azul pintado por mim, surgiu o rosto da moça. Fiquei
admirando a beleza dela lá nas alturas… Quando acordei, estava no
Campo Limpo. Agora vou atrás do meu sonho… Gostou da pintura das
janelas? Segunda-feira passo tinta nas paredes.
Milton
Hatoum, in Um solitário à espreita
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