Assistindo
a um desfile de escolas de samba, espetáculo maravilhoso de ritmo,
som e colorido, X teve a sensação de dissolver-se na multidão, e
por duas horas não existiu em si, mas no grupo. Guardava todas as
percepções do indivíduo, e era como se esse indivíduo tivesse
milhares de olhos, ouvidos, bocas. Seu próprio corpo se alastrara,
pois, na impossibilidade de mover-se do ponto em que estava, sentia
que suas pernas iam acabar a três quadras de distância, onde a rua
aparecia livre.
Terminada
a exibição, X verificou que lhe faltava a carteira, subtraída do
bolso da calça por alguém que, menos comunicativo, resistira à
absorção pela massa. Levara pouco dinheiro e, além de alguns
papéis, apenas lamentou a perda de um retrato muito amado.
Consolou-se pensando que essa lembrança seria restituída por não
interessar a outrem.
No
dia seguinte, o correio trouxe-lhe um cheque, e X foi ao banco
descontá-lo. O empregado pediu-lhe, por obséquio, a carteira de
identidade, e como ele não a tivesse, e ninguém ali o conhecesse
para atestar que X era mesmo X, saiu sem receber o dinheiro.
Dirigiu-se
a uma repartição pública, onde ia ter vista de um processo. E já
estendia a mão para pegá-lo quando o funcionário, mantendo
suspenso o maço de papéis, e delicadamente:
— Sua
carteira, faz favor.
X
explicou que estava sem carteira, furtada no meio do aperto etc. Mas
não tinha importância: também era funcionário público, e o
colega…
— Então
me dê sua carteira funcional.
A
funcional, com seu número de matrícula no Instituto das Sementes
Oleaginosas, também fora batida, e X não podia consultar o dossiê
sem comprovar sua condição de X.
Como
todo pequeno-burguês neste momento difícil para a humanidade, X tem
dupla ou tripla profissão, e deu um pulo ao sindicato de classe, à
cata de um atestado de que era mesmo X, e não Y. Pediram-lhe, de
entrada, que mostrasse a carteira sindical. Claro que a sindical
sumira com as outras. Mas não se podia espiar no arquivo os dados
transcritos no documento?
—
Poder, pode, mas não há como a
carteirinha mesmo. E o arquivo está sendo reorganizado. O senhor
volte daqui a duas semanas, tá?
— Meu
caro…
— Se
o senhor não tem carteira, que hei de fazer? Como posso saber que o
senhor é o senhor mesmo? Faça como eu: o papai aqui só toma banho
com a carteira sindical amarrada à cintura, num impermeável.
X
arrastou-se ainda ao Ministério do Trabalho, mas, como também
houvesse ficado sem carteira profissional (não confundir com
sindical), não podia provar que tinha carteira profissional, nem
mesmo profissão, nem sequer que existia.
Num
esforço derradeiro, lembrou-se de que, como toda gente, era sócio
da ABI, e esta poderia salvá-lo, dando-lhe uma carteira nova de
jornalista. Mas era preciso um retrato, sem o que a carteira não
provava nada, e o fotógrafo da rua da Carioca, ao fim de uma longa
escada comida pelo tempo, avisou:
—
Distinto, procure daqui a três dias. Até
lá, é bom não sair de casa…
Só
então X compreendeu. Compreendeu que, desde a perda de suas
carteiras, não existia mais. Um homem só existe pelos documentos de
identidade. Seu retrato vale mais do que o corpo, um carimbo mais do
que sua palavra, e um número mais do que tudo. Iluminava-se o velho
problema filosófico da essência e da existência. Kierkegaard
vislumbrara a solução, ao afirmar que existente é aquele que
experimenta certa intensidade de sentimentos em contato com alguma
coisa fora dele. Existente é aquilo que a coisa externa faz de nós,
comunicando-nos seu sopro, e sem essa coisa não podemos sequer
viver, pois nossos semelhantes não nos percebem em nós, mas em
nossos símbolos civis. E o símbolo é a essência do ser.
Sem
existir, X chegou ao largo da Carioca. Aí se viu no meio de uma
briga, empurraram-no, maltrataram-no, e, como não tivesse documento
algum, foi conduzido ao distrito e recolhido — por engano — ao
xadrez. Lá dentro, um homem humilde fitou-o por muito tempo,
hesitante, e afinal lhe tocou no ombro:
— O
senhor se parece muito com um retrato que eu achei jogado na rua e
guardei à toa. Quer ver?
Tirou
do bolso sujo o velho retrato do pai de X, que ficara na carteira
furtada. E X sentiu-se existir novamente, pois fora reconhecido,
através das linhas do rosto, e sem o menor documento estampilhado.
Carlos
Drummond de Andrade, in 70 historinhas
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