No
velho sertão nordestino, que as rodovias modificaram pela incessante
aproximação com o litoral, até o Ano do Centenário (1922),
conservavam-se, quase imutáveis, as linhas-mestras da sociedade
setecentista. Chefes políticos, vigários, professores locais
mantinham, pelo exemplo natural da vocação obstinada, a fisionomia
cultural de outrora, fiéis à herança poderosa do regímen
antigo no qual haviam nascido.
Regime,
rejume, era uma norma inalterável, forma de vida estável e
natural. Vivendo, há meio século, nessa região do Rio Grande do
Norte e da Paraíba, justamente no sertão mais típico e severo,
sertão de pedra, o oeste norte-rio-grandense e as ribeiras
paraibanas do Rio do Peixe e do Piancó, sou uma testemunha, uma
memória sobrevivente desse ciclo que desapareceu quase por completo.
Essas
reminiscências constituem o fundamento de estudos que a biblioteca e
a viagem completaram no plano da atualização e do confronto.
Um
desses motivos de pesquisa tem sido a saudação, a cortesia do
sertão velho, aos visitantes, hóspedes, familiares.
A
lição etnográfica é que a primeira saudação humana seria pela
voz tranquilizadora ou aliciante. Nasceram as fórmulas da polidez
milenar, troca de palavras numa convenção insubstituível. Alusão
à presença física, à saúde, ao perpassar do tempo. Ainda vivem
essas perguntas, estabelecendo a confiança pelo interesse cordial. É
o modo internacional de saudar.
Pelo
litoral atlântico onde vivia o indígena tupi, os cronistas
registraram a troca ritual das palavras indispensáveis, rápido
comento pela vitória da jornada até a aldeia fraternal.
ERE-UI
PE? Vieste então? PA-AIUT , sim, vim. É o nosso íntimo: – Então?
Por aqui? – É verdade, estou por aqui! Hans Staden saúda
Cunhambebe: – Vives tu ainda? – O grande soberano selvagem
responde apenas: – Sim, vivo ainda! – No mundo caraíba nas
cabeceiras do Xingu, Karl von den Steinen fixou o cerimonial: –
Ama: tu! Úra: eu! – Nada mais. Eu e tu estamos
diante um do outro, individualizados, reais, autênticos. Vamos viver
juntos como amigos. Entretermo-nos. Para que maiores circunlóquios?
Antes
da palavra expressiva haveria o primeiro gesto, ainda contemporâneo,
de mostrar as mãos, uma só mão no mínimo, visivelmente sem armas,
agitada na homenagem ao advena. E deste àquele. Desarmados, na
confiança cordial. Mudamos milhares de coisas, mas essa saudação
ficou.
Andei
uns tempos indagando sobre o aperto de mão (Superstições
e costumes, ed. Antunes, Rio de Janeiro, 1958). Não havia no
Brasil ameraba. É uma presença europeia. Em 1884 os bacairis
“mansos” do Mato Grosso não compreendiam a significação da mão
estendida.
O
mesmo ocorrera na África Ocidental e Oriental. O preto não sabia
apertar a mão como um cumprimento. Presentemente é um índice de
aculturação. A saudação normal do brasiliense consistia
nas frases: – Vieste? Vim! Eu! Tu! Eu bom! Eu amigo! Nenhum gesto
acompanhava. Havia nalgumas malocas a saudação lacrimosa,
de uso vasto e velho fora do Brasil. Seguia-se, em qualquer dos
casos, a entrega de alimentos e das ofertas do estrangeiro. Receber o
hóspede, chorando, era um processo da cordialidade feminina. O
estrangeiro devia chorar também.
O
sertão, mesmo do século XIX e primeiras décadas do XX, conheceu o
aperto de mão para pessoas de sociedade, gente letrada, de
importância. O sertanejo antigo não apertava a mão. Falava
saudando. Ouvia, sorrindo, a resposta. Ainda hoje não é comum entre
populares. Batem no ombro, nas costas, no deltoide. Fazem ar de riso.
Mesmo o abraço é um toque de mão num ou em ambos os ombros. Bater
no ombro é símbolo clássico de intimidade. Local de cerimônias
fidalgas e sagradas. Andam de mão no ombro, amigos.
A
saudação velha era essencialmente a palavra e não o gesto. Assim
vi, há cinquenta anos passados. Identicamente entre o povo
português, lavradores, gente do interior, fiel às regras de
outrora.
No
alpendre da fazenda velha. Lampião aceso. Conversava-se nas
primeiras horas da noite. Os recém-vindos não vinham apertar a mão
do dono da casa.
Entravam
dizendo e ouvindo os períodos do preceito:
– Boa!
Boa noite pra todos! Boa! Tome assento!
Na
saída: – Bem. Vou indo! Até! lntante!...
E
a resposta: – lntantin!... Instante, instantezinho, até
breve, até logo.
Nas
feiras via o encontro dos compadres, semanalmente avistados. Batiam
nos ombros, com empurrões afetuosos que semelhavam provocações.
Nunca aperto de mão ou abraço. Este, quando em raro surgia, era um
breve apertão na altura do deltoide. Entre nós, meninos, a educação
mandava salvar, mas consistia infalivelmente nas frases: –
Tá bom? Então? Como li vai?
As
pesquisas posteriores nas cidades não modificaram o registro
sertanejo. Bem poucos apertos de mão entre gente do povo. Batida no
ombro, “a mão no ombro”, denunciadora amistosa.
Vezes
a roda já estava formada quando aparecia um amigo. Sorria, abanando
a mão na direção de cada um de nós. Vinha dar a mão ao
mais graduado, ao de respeito, não íntimo. Entre as mulheres,
nenhuma diferença do observado. A saudação com a cabeça nunca vi
ou dificilmente vi fora da igreja. E mesmo nos templos os sertanejos
e agrestinos são desajeitados, esquerdos, com um ar de cumprir
encargo acima das possibilidades ginásticas.
Alguns
vaqueiros de Campo Grande (Augusto Severo, RN) só sabiam bater
nos peitos ou fazer o sinal da cruz diante do altar. O Vigário
Velho, Manuel Bezerra Cavalcanti (1814-1894), 54 anos vigariando a
mesma paróquia, afirmava que o sertanejo só sabe baixar a cabeça
procurando rasto de bicho!…
Meus
tios e primos nas festas da rua (Vila) cumprimentavam o grupo
numa brusca sacudidela de ombros e cabeça ao mesmo tempo. Estiravam
a mão hirta, dura, de pau, sem apertar. Quem aperta a mão é
praciano. Do sertão de São Paulo afirma o mesmo Cornélio
Pires.
O
adeus a distância era estender o braço, curvo, pouco acima da
cabeça, a mão direita agitada, abanando com a palma voltada para
dentro. Mostrando a palma da mão é influência moderna e das
cidades. E fazendo o gesto de quem lava vidraça, mexendo a mão como
limpador de para-brisa, é recentíssimo.
Esses
eram os estatutos da cortesia sertaneja, no tempo em que
vintém era dinheiro.
Os
Drs. Arthur Neiva e Belisário Pena (Viagem científica, 1916)
registraram uma aculturação. Já apertavam as mãos, mas a mão no
ombro era indispensável. Informam os dois sábios: “Na zona
percorrida da Bahia, Pernambuco e Piauí existe curioso modo de
saudação entre os recém-chegados; apertam as mãos e em seguida
pousam uma das mãos sobre o ombro do amigo, enquanto fazem perguntas
de estilo. É cumprimento obrigatório e provavelmente representa
hábito de etiqueta usada em outras épocas”. A observação é de
1912. A etiqueta antiga seria a mão no ombro, unicamente. Assim
saudavam-se os fidalgos cavaleiros da Idade Média.
Luís
da Câmara Cascudo, in Coisas que o povo diz
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