“O
torturador necessita da vítima para criar verdade nesse jogo a duas
mãos que é a fabricação do medo”
Dos
cadernos de Irene
Lourenço
de Castro entra em casa, à mesma hora de sempre, essa hora em que a
luz adoece, cansada de tanto dia. Roda o manípulo da porta com
cuidado como se o mundo se pudesse desconjuntar a partir daquele
gesto. E logo a voz da mãe, lamparinando o fundo do corredor:
— É
você, meu filho?
Dona
Margarida comparece na entrada da velha casa colonial. Cobre as
costas do filho com um casaquinho, feito por suas mãos. É fim de
Verão, mas as noites já arrefecem no litoral. Lourenço de Castro
encolhe os ombros, a jeito de ela estender o casaco. Outra vez
cansado, mais morto que peixe. Ninguém avalia o custo de ser
inspetor da PIDE, em pleno mato africano, lá onde o pé de branco
nunca assentou. A vila de Moebase tem outros brancos, sim, mas
poucos. Os dedos das mãos sobram se os quisermos contar. Há quem? O
padre Ramos, o médico Peixoto, o administrador Marques e o agente
Diamantino. Mais as duas mulheres de casa, a mãe e a tia Irene. Mas
as mulheres não contam. Assim se dizia em casa dos Castros. Maior
parte das vezes até descontam, acrescentavam.
A
chegada de Lourenço de Castro a casa é um ritual, sempre igual. A
mãe, infalível, exerce o amparo que é devido a um guerreiro. Mas
este guerreiro, de espáduas circunflexas, não exala glória. O
inspector Lourenço arrasta-se para a casa de banho e lava as mãos.
A água corre como se não bastasse um rio para o limpar.
— Por
que não confessam? Custava alguma coisa…
O
sangue vai gotinhando na bacia. Ele estende os braços, ainda úmidos.
A mãe enxuga-os, com terno vigor.
— Lavou
bem, querido? Agora, venha. Já preparei a sua caminha.
O
pide vai à cozinha e volta a passar as mãos por água. Cheira os
dedos como se quisesse confirmar a teimosia de alguma nódoa. A velha
mãe pega-lhe nos braços, beija-lhe os dedos finos.
—
Bonitas mãos, fazem lembrar...
— Estou
cansado mãe, quero dormir. Onde está o pano?
— O
pano foi para lavar. Estava cheio de baba. Você está-se a babar
muito, fico preocupada, não será dessas maleitas africanas…
— Eu
não durmo sem o pano, a mãe já sabe.
— Está
outro pano já lavadinho debaixo da sua almofadinha.
O
pide deita-se. A mãe, na cabeceira, lhe aconchega o lençol. O
filho, inquieto, espreita o quarto:
— O
cavalinho?
— Já
lhe chego o cavalo, não se preocupe.
Ela
arrasta um cavalinho de madeira, coloca-o a jeito de Lourenço tocar
a sua crina. O pide crispa os dedos na garupa do cavalinho e fá-lo
balançar.
— E
a tia Irene?
A
mãe desvia os olhos. Sempre na mesma, essa Irene. Que vergonha, uma
branca proceder daquela maneira, desapossuída de juízo. E pior que
ter perdido a razão: ela perdera o pudor.
— Que
sina a nossa, meu filho!
Pausa.
Suspiros. O polícia pára de balançar o cavalo. Soergue-se para
olhar melhor o rosto de Dona Margarida.
— Ela
voltou a sair hoje?
—
Voltou, pois.
— Veio
outra vez toda suja?
—
Suja?! Aquilo é argila, coisa limpa.
—
Argila? Matope é o que aquilo é.
Temos que acabar com isto, mãe. A tia Irene compromete-nos e nós
temos um nome a defender.
— Tenha
paciência, Lourenço. Irene é a nossa única família. Não se
esqueça: não temos mais ninguém.
O
silêncio que se instala faz pensar em culpa. Alguma punição
divina. Quem sabe, artesanato do diabo. O quarto parece ter ficado
abafado. O inspetor examina os braços, como se procurasse um
desarrumado detalhe.
— Isto
aqui não é sangue?
— Não,
filho, não é. Pegue no pano e durma.
—
Dormir? Se a mãe soubesse o ódio que
eu tenho a esses pretos.
— Não
diga isso, filho. Há bons, há maus.
A
mãe retira-se, costas dobradas, arredondadas como o dorso do corvo.
O corredor recebe-a como se ela pertencesse às trevas. E tudo se
escoa, silêncio e escuridão.
Passam-se
horas e as luzes de novo se acendem, interrompendo a noite. Os gritos
de Lourenço ecoam no corredor. A mãe acorre, sem pressa. Traz um
copo de leite na mão. Já sabe o que se passa quando se debruça
sobre o filho.
— Outra
vez o pesadelo?
Lourenço
nem responde, ocupado em respirar. O suor desenrola-se, um líquido
lençol o recobre.
— Os
tambores. Não os ouve?
— Era
um batuque, mas já parou há algum tempo.
— Mas
eu continuo a ouvir, mãe.
Ela
senta-se na cabeceira, limpa-lhe o suor e estende-lhe o leite morno.
O filho recusa. Há uma raiva que ele não consegue guardar. A mãe
corrige a porta, ainda que não haja aragem nenhuma. Se não corre
brisa por que razão a bandeira portuguesa tombou da parede onde
estava pendurada?
— É
esse cego, eu ainda vou dar cabo desse gajo.
— O
cego Tchuvisco? Deus ainda o castiga. Que mal pode fazer esse pobre
diabo?
— Esse
gajo é que faz isto tudo, mãe.
—
Disparate, filho.
—
Acredite em mim, eu conheço essa
gente.
— Você
anda agitado, Lourenço. Prometa-me: amanhã vamos ver o doutor
Peixoto.
— Eu
não estou doente, mãe.
— Mas
ele já anda a tratar a tia Irene, não custa nada…
— Não
vou, já disse que não vou.
A
mãe acaricia os cabelos do filho. A respiração desofega, os olhos
estão suspensos no infinito do teto.
— A
mãe pode espreitar-me?
— Outra
vez o umbigo, Lourencinho?
—
Está-me a crescer, mãe. A sério,
desta vez é a sério. Até já estou a sentir o cordão umbilical a
sair-me.
— Deixe
que eu lhe faço uma massagem e isso já passa.
A
mãe senta-se na cama e esconde as mãos por baixo dos lençóis.
Seus olhos agasalham muita ternura.
— Vê,
mãe? Eu não dizia?
— Já
vai passar, filho.
— Isto
só pode ser feitiço da pretalhada. É esse cego, mãe.
A
mãe volta a ensaiar uma retirada. À porta, ainda ganha coragem e
pergunta:
— Está
tanto calor. Não quer mesmo a ventoinha?
—
Nunca! Ventoinha, nunca!
—
Pronto, pronto! Era só uma ideia.
Durma, filho. Durma.
Mia
Couto, in Vinte
e Zinco
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