Queequeg, de Kathleen Piercefield
Ao
voltar da Capela à Estalagem do Jato, lá encontrei Queequeg todo
sozinho; tinha saído da Capela um pouco antes da bênção. Estava
sentado num banco diante do fogo, com os pés na lareira; com uma das
mãos segurava, perto do rosto, seu pequeno ídolo negro; olhava
atento para o rosto do ídolo e com um canivete delicadamente lhe
diminuía o nariz, enquanto cantarolava para si mesmo em seu modo
pagão.
Mas,
sendo então interrompido, colocou a imagem de lado; e logo,
dirigindo-se à mesa, pegou um livro grande e, colocando-o no colo,
começou a contar as páginas com uma regularidade deliberada; a cada
cinquenta páginas – parece-me – parava um pouco, olhava
despreocupadamente à sua volta e soltava um longo e gorgolejante
assobio de espanto. Depois recomeçava com as próximas cinquenta;
parecia começar sempre no número um, como se não soubesse contar
mais do que cinquenta, e era apenas com um tal número de cinquentas
encontrados juntos que seu espanto diante da multidão de páginas
surgia.
Com
muito interesse, sentei-me a observá-lo. Embora fosse um selvagem,
com horrendas marcas no rosto – na minha opinião, pelo menos –,
suas feições tinham contudo algo que não era de modo algum
desagradável. Você não pode esconder a alma. Através de todas as
suas tatuagens sobrenaturais, pensei ter visto traços de um coração
simples e honesto; e em seus olhos grandes e profundos, de um negro
vívido e audaz, lampejava uma coragem capaz de desafiar mil
demônios. E além de tudo isso o Pagão tinha uma certa altivez de
postura, que nem mesmo sua incivilidade conseguia atrapalhar. Parecia
um homem que nunca tinha se curvado diante de alguém, nem tido
credores. Se isso se devia ao fato de estar sua cabeça raspada,
deixando a testa mais livre e brilhante, aparentemente maior do que
de outro modo seria, não arriscarei dizer; mas certo era que sua
cabeça era frenologicamente excelente. Pode parecer ridículo, mas
me lembrava a cabeça do General Washington, como vista nos bustos
mais conhecidos. Tinha a mesma longa e gradual depressão acima das
sobrancelhas, que também se projetavam como dois longos promontórios
densamente cobertos pela mata. Queequeg era uma versão canibal de
George Washington.
Enquanto
eu o examinava assim minuciosamente, como que fingindo nesse ínterim
estar olhando a tempestade da janela, ele não prestou atenção à
minha presença e tampouco se incomodou em me lançar um simples
olhar; mas parecia inteiramente ocupado em contar as páginas daquele
livro maravilhoso. Considerando a sociabilidade com que dormíramos
juntos na noite anterior e, em especial, considerando o braço
afetuoso que encontrei jogado em cima de mim enquanto acordava pela
manhã, julguei sua indiferença muito estranha. Mas os selvagens são
criaturas estranhas; às vezes você não sabe como lidar com eles. A
princípio são intimidantes; sua simplicidade calma e contida parece
uma sabedoria socrática. Também tinha notado que Queequeg nunca, ou
quase nunca, se juntava aos outros marinheiros da estalagem. Não
tomava nenhuma iniciativa; parecia não desejar aumentar o círculo
das suas relações. Tudo isso me parecia muito estranho; mas,
pensando melhor, havia algo de sublime nisso. Era um homem que estava
a mais de vinte mil milhas de sua terra, a caminho do cabo Horn –
que era o único caminho para se chegar lá –, jogado no meio de
pessoas que para ele eram tão estranhas quanto se estivesse no
planeta Júpiter; e, ainda assim, ele parecia bem à vontade;
preservando ao máximo sua serenidade; satisfeito com sua própria
companhia; sempre igual a si mesmo. É certo que isso era um toque de
boa filosofia; embora ele sem dúvida jamais tivesse ouvido falar de
algo parecido. Mas, talvez, para sermos verdadeiros filósofos, a
nós, mortais, fosse necessário viver e lutar sem termos consciência
disso. Tão logo um homem se apresente como filósofo, concluo que,
como a velha dispéptica, ele deve ter “estragado o aparelho
digestivo”.
Durante
um tempo fiquei sentado ali naquele aposento solitário; o fogo
baixo, num estágio intermediário após sua primeira intensidade ter
aquecido o ar, apenas brilhando para ser olhado; as sombras e os
fantasmas noturnos se juntando nos vãos das janelas, observando-nos,
silenciosa e solitária dupla; a tempestade bramindo lá fora em
ondas solenes; comecei a ter consciência de sentimentos estranhos.
Senti algo derretendo em mim. Meu coração despedaçado e minhas
mãos enlouquecidas já não se rebelavam contra o mundo lupino. Este
selvagem conciliador o redimira. Lá estava ele sentado, sua
indiferença era de uma natureza que não conhecia nem a hipocrisia
civilizada, nem a fraude mais branda. Era um selvagem; um espetáculo
dentre os espetáculos; contudo, comecei a me sentir misteriosamente
atraído por ele. E aquelas mesmas coisas que teriam repelido a
maioria dos outros eram os próprios ímãs que assim me atraíam.
Vou experimentar um amigo pagão, pensei, já que a bondade Cristã
se revelou mera cortesia vazia. Arrastei meu banco para perto dele e
fiz sinais e gestos amistosos, enquanto me esforçava para falar com
ele. No começo ele mal notou meus movimentos, mas dentro em pouco,
quando me referi à sua hospitalidade da noite anterior, ele me
perguntou se seríamos novamente companheiros de cama. Disse-lhe que
sim; pareceu-me satisfeito, talvez até um pouco lisonjeado.
Nós
então folheamos o livro juntos, e fui diligente em lhe explicar o
propósito da impressão e o significado das poucas ilustrações que
ali encontramos. Assim, logo cativei seu interesse; e em seguida
passamos a tagarelar o mais que podíamos sobre outros lugares que
podiam ser visitados nesta cidade famosa. De pronto propus que
fumássemos; e, pegando sua bolsa para tabaco e sua machadinha,
calmamente me ofereceu uma baforada. E ficamos então sentados,
alternando baforadas daquele cachimbo esquisito, que passávamos um
para o outro.
Se
ainda restasse um vestígio de indiferença ou frieza no coração do
Pagão em relação a mim, esta agradável e cordial cachimbada
derreteu o gelo, e nos tornamos amigos íntimos. Ele parecia ter se
afeiçoado a mim tão natural e espontaneamente quanto eu a ele; e,
quando acabamos de fumar, encostou sua testa na minha, puxou-me pela
cintura e disse que a partir daquele momento estávamos casados; o
que significava no dizer de seu país que éramos amigos do peito;
morreria por mim de boa vontade, se preciso fosse. Num conterrâneo,
este súbito ardor de amizade teria parecido um pouco prematuro, algo
bastante suspeito; mas a este simples selvagem as tais velhas regras
não se aplicavam.
Após
o jantar, e após novas conversas e fumadas, fomos juntos para o
nosso quarto. Deu-me de presente sua cabeça embalsamada; pegou sua
enorme bolsa de tabaco e, tateando por debaixo do tabaco, pegou uns
trinta dólares em moedas; espalhou-as sobre a mesa e, dividindo-as
mecanicamente em duas porções iguais, empurrou uma delas em minha
direção e disse que eram minhas. Eu ia protestar; mas ele me deixou
sem palavras quando as derramou nos bolsos de minha calça. Deixei-as
ficar. Ele então começou suas orações noturnas, pegou seu ídolo
e removeu o aparador. Devido a certos sinais e sons, pensei que ele
devia estar ansioso para que eu me juntasse a ele; mas, sabendo bem o
que aconteceria em seguida, deliberei por um momento se, caso ele me
convidasse, deveria ou não aceitar.
Eu
era um bom Cristão; nascido e logo trazido ao seio da infalível
Igreja Presbiteriana. Como então poderia me unir a esse idólatra
selvagem na adoração de seu pedaço de madeira? Mas o que é a
adoração?, pensei. Você então supõe, Ishmael, que o magnânimo
Deus do céu e da terra – e até dos pagãos – pode sentir ciúmes
de um pedaço insignificante de madeira preta? Impossível! Mas o que
é a adoração? – fazer o desejo de Deus – isso é
adorar. E qual é o desejo de Deus? – fazer ao semelhante o que
desejo que façam a mim – esse é o desejo de Deus. Ora,
Queequeg é meu semelhante. E o que gostaria que Queequeg fizesse por
mim? Ora, unir-se a mim em meu rito Presbiteriano de adoração.
Portanto, eu devo unir-me a ele, logo, devo tornar-me um idólatra.
Assim, acendi as aparas; ajudei a pôr o idolozinho inocente de pé;
ofereci-lhe biscoito queimado com Queequeg; fiz uns dois ou três
salamaleques diante dele; beijei seu nariz; terminadas essas
cerimônias, nos despimos e fomos para a cama, em paz com as nossas
consciências e em paz com o mundo todo. Mas não adormecemos sem
antes papear um pouco.
Não
sei por quê; mas não há lugar mais propício para confidências
entre amigos do que uma cama. Marido e mulher, dizem, ali abrem até
o fundo da alma um para o outro; e alguns casais idosos muitas vezes
ficam deitados conversando sobre os velhos tempos até o amanhecer. E
assim, na lua-de-mel de nosso coração, eu e Queequeg ficamos
deitados – um casal aconchegante e amoroso.
Herman
Melville, in Moby Dick
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