domingo, 28 de janeiro de 2018

Segundo dia dos viventes

Na segunda manhã, eu esperava que Izidine reacordasse. Aquele seria o seu segundo despertar naquela manhã. Já antes Marta o tinha feito saltar da cama. Trazia uma chávena de chá. O polícia bebeu-a de um trago, olhos embrulhados de sono. Entre ratos, baratas e pesadelos sobrava-lhe pouca cabeça. Marta riu-se de o ver assim e saiu para que ele repousasse um pouco mais. Logo a seguir, o polícia voltara a adormecer. Como tinha dormido mal naquela noite! Suspeitava de minha presença dentro dele? É muito de duvidar: sou menos que a névoa na teia de aranha.
Izidine voltou a acordar umas horas depois. Antes de sair ficou a olhar a roupa desarrumada sobre uma velha mesa. Será que a deixara assim tão espalhada? De repente, junto ao chapéu, viu a mesma casca que deitara fora na noite anterior. Levantou-se e recolheu-a. Guardou-a num dos bolsos do casaco. Depois, deu andamento a um plano que traçara previamente: descer à praia para calcorrear as grandes rochas, mesmo junto à rebentação. Tinha sido ali que encontraram o corpo.
A maré estava vazia e deixava a descoberto grandes porções de areia e rocha. Escutavam-se as gaivotas, suas tristes estridências. Não tardaria a ouvirem-se os chori--choris, esses passaritos que chamam pela maré cheia. O mar enche e vaza sob mando de aves. Ainda há pouco eram os tchó-tchó-tchós que ordenavam que as águas descessem. Engraçado como um ser gigante como o oceano presta obediências a tão ínfimas avezitas.
Existira, em tempos, um ancoradouro junto ao recife rochoso. Eu mesmo, Ermelindo Mucanga, carpinteirara nessa plataforma. A morte me interrompeu o serviço. A Independência parou o resto da obra. Depois, o mar se vingara naquele porto inacabado. Restavam pedras avulso. E troncos que teimavam ondear por ali.
Izidine ficou sentado na areia molhada. O barulho das ondas o ajudava a pensar. Parecia evidente que o crime tinha sido cometido por mais de uma pessoa. Eram necessários vários braços para transportar o corpo de um homem como Excelêncio. Ou, quem sabe, o crime poderia ter sido cometido ali mesmo, junto às rochas?
Olhou para a barreira e viu Marta. Ela o espreitava, seguindo-lhe as andanças. A enfermeira procedia como se suspeitasse de ocultas intenções. Naquela manhã, depois de entregar o chá, ela recusara acompanhar o polícia:
Não quero atrapalhar. Já bem basta você mesmo para se atrapalhar...
Desculpe, não entendi...
Marta se calou, arrependida. Rodou sobre si mesma, adiando a pedida explicação. Por fim, acedeu a falar, fingindo limpar uma poeira na camisa do inspetor.
O que se encontra nesta vida não resulta de procurarmos.
No aviso dela, o polícia deveria simplesmente sentar-se e ficar quieto. Aquele não era o seu mundo, ele que respeitasse. Deixasse tudo quieto, mesmo silêncios e ausências. Izidine se atestava de dúvida. Na noite anterior, o velho-menino já o tinha poeirado o suficiente. Navaia Caetano lhe pedira que escutasse o mar. Porque, para além do marulhar, lhe haveriam de chegar gritos humanos.
Gritos? — perguntou Izidine. — Gritos de quem?
Dos falecidos — respondera Caetano.
E não mais disse. O polícia se intrigava. Porque, agora, Marta Gimo lhe solicitava quase o inverso.
Ontem me pediram para ouvir. Você me pede o contrário.
Pediram para ouvir o quê?
Repetiu o enigmático conselho de Navaia. O que queria ele dizer? Bem que Marta o poderia ajudar nesse esclarecimento. Mas ela sorriu, negando com a cabeça. A enfermeira se fazia de cara. Izidine voltou a pedir-lhe. Por fim, ela acedeu. O que o velho dissera foi que, sob o ruído da rebentação, se escondiam vozes de naufragados, pescadores afogados e mulheres suicidadas. De entre esses lamentos lhe haveriam de chegar os gritos do próprio Vasto Excelêncio. O polícia sorriu, desdenhoso. Marta lhe corrigiu o cepticismo:
Está a ver a sua arrogância? Pois fique sabendo que, todas as manhãs, o morto grita o nome do assassino.
Não posso crer.
Todas as manhãs o morto clama juras de vingança.

Agora, sentado junto à rebentação das ondas, o inspector lembrava as palavras da enfermeira. E sorria. Quem sabe Marta tinha razão? Ele estudara na Europa, regressara a Moçambique anos depois da Independência. Esse afastamento limitava o seu conhecimento da cultura, das línguas, das pequenas coisas que figuram a alma de um povo. Em Moçambique ele ingressara logo em trabalho de gabinete. O seu quotidiano reduzia-se a uma pequena porção de Maputo. Pouco mais que isso. No campo, não passava de um estranho.
Levantou-se e sacudiu a areia. Havia uma certa raiva no seu gesto, como se quisesse sacudir não os grãos mas as suas próprias lembranças. Caminhou sobre as rochas. Até que encontrou uma espingarda. Nem sequer estava escondida. Parecia ter sido arrastada pelas ondas. Procurou nas cercanias. Havia restos de paus. Como se fossem pedaços de uma jangada. Uma embarcação ali? Se todos lhe tinham certificado que aquelas águas eram inavegáveis!? Lembrou as palavras do velho Navaia:
O mar aqui carrega mais traição que ondas.
Na noite anterior, Navaia lhe contara uma história. Se passara, em tempos, quando um velho tentara fugir por mar. Improvisara uma jangada e se fizera à água. Mas as rochas e o mar, como que por magia, trocaram aparências. Aquilo que o fugitivo acreditava serem ondas, de repente, se solidificavam, empedernidas. E os penedos se dissolviam, liquefeitos. A embarcação se desamantelou. Sem desfecho ficou o velho que sonhara evadir-se.
Navaia tirava estória de sua imaginação? Houvesse ou não uma inventada história, o certo é que aquele mar não dava conselho para viagem. A história da jangada era, afinal, verdadeira? Seria aquele um resto material dessa frustrada fuga? A suspeita enrugou a testa do inspetor: alguma coisa lhe escondiam. Distraído, nem notou que a noite estava já caindo. Rapidou-se pelo caminho de regresso. Aquela noite, tinha marcado encontro com o velho português, Domingos Mourão. Esperou-o no pátio mas o outro se demorou. O polícia se sentou na amurada do forte sentindo, ao fundo, o rumor do oceano. De repente, acreditou ouvir reais vozes junto à praia.
Esse barulho não são pessoas.
Era Marta que se chegava perto, vinda do escuro, embrulhada em capulana. Se aproximou, parando junto dele. Ficaram como sentinelas silenciosas, junto à fortaleza.
Será o mar que faz esse ruído?
O mar também não é. Esse barulho é a própria noite. Você, lá de onde vem, há muito que deixou de ouvir a noite.
Depois ela se sentou, cobrindo as pernas com a capulana. Começou, então, a entoar em surdina uma antiga canção de embalar. Izidine foi levado para longe, para fora do acontecível.
Minha mãe me cantava essa mesma melodia.
Mas Marta já não estava ali. Ela se retirara, sombra vadia. O polícia ficou ainda um tempo, tentando decifrar os sons que chegavam da rebentação. Os olhos lhe começaram a pesar e acabou vencido pelo sono. Despertou, minutos depois. Uma mão lhe chamava à realidade. Era o velho português:
Venha ver o mar daqui de cima!
Domingos Mourão se aprontava num banco de pedra, junto à árvore do frangipani. E assim, olhos postos no horizonte, lhe perguntou:
O senhor me perdoe a indelicadeza. Será que nasceu perto do mar?
Izidine negou. O português disse que ouvira falar de uma terra longínqua em que os velhos se sentavam, de noite, ao longo da praia. Ficavam assim em silêncio. O mar vinha e escolhia quem ia levar.
Quem sabe se, esta noite, sou eu o escolhido?
E o velho português fechou os olhos, se internando num silêncio demorado. Depois, falou.
Mia Couto, in A varanda do Frangipani

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