Na
segunda manhã, eu esperava que Izidine reacordasse. Aquele seria o
seu segundo despertar naquela manhã. Já antes Marta o tinha feito
saltar da cama. Trazia uma chávena de chá. O polícia bebeu-a de um
trago, olhos embrulhados de sono. Entre ratos, baratas e pesadelos
sobrava-lhe pouca cabeça. Marta riu-se de o ver assim e saiu para
que ele repousasse um pouco mais. Logo a seguir, o polícia voltara a
adormecer. Como tinha dormido mal naquela noite! Suspeitava de minha
presença dentro dele? É muito de duvidar: sou menos que a névoa na
teia de aranha.
Izidine
voltou a acordar umas horas depois. Antes de sair ficou a olhar a
roupa desarrumada sobre uma velha mesa. Será que a deixara assim tão
espalhada? De repente, junto ao chapéu, viu a mesma casca que
deitara fora na noite anterior. Levantou-se e recolheu-a. Guardou-a
num dos bolsos do casaco. Depois, deu andamento a um plano que
traçara previamente: descer à praia para calcorrear as grandes
rochas, mesmo junto à rebentação. Tinha sido ali que encontraram o
corpo.
A
maré estava vazia e deixava a descoberto grandes porções de areia
e rocha. Escutavam-se as gaivotas, suas tristes estridências. Não
tardaria a ouvirem-se os chori--choris, esses passaritos que chamam
pela maré cheia. O mar enche e vaza sob mando de aves. Ainda há
pouco eram os tchó-tchó-tchós que ordenavam que as águas
descessem. Engraçado como um ser gigante como o oceano presta
obediências a tão ínfimas avezitas.
Existira,
em tempos, um ancoradouro junto ao recife rochoso. Eu mesmo,
Ermelindo Mucanga, carpinteirara nessa plataforma. A morte me
interrompeu o serviço. A Independência parou o resto da obra.
Depois, o mar se vingara naquele porto inacabado. Restavam pedras
avulso. E troncos que teimavam ondear por ali.
Izidine
ficou sentado na areia molhada. O barulho das ondas o ajudava a
pensar. Parecia evidente que o crime tinha sido cometido por mais de
uma pessoa. Eram necessários vários braços para transportar o
corpo de um homem como Excelêncio. Ou, quem sabe, o crime poderia
ter sido cometido ali mesmo, junto às rochas?
Olhou
para a barreira e viu Marta. Ela o espreitava, seguindo-lhe as
andanças. A enfermeira procedia como se suspeitasse de ocultas
intenções. Naquela manhã, depois de entregar o chá, ela recusara
acompanhar o polícia:
— Não
quero atrapalhar. Já bem basta você mesmo para se atrapalhar...
—
Desculpe, não entendi...
Marta
se calou, arrependida. Rodou sobre si mesma, adiando a pedida
explicação. Por fim, acedeu a falar, fingindo limpar uma poeira na
camisa do inspetor.
— O
que se encontra nesta vida não resulta de procurarmos.
No
aviso dela, o polícia deveria simplesmente sentar-se e ficar quieto.
Aquele não era o seu mundo, ele que respeitasse. Deixasse tudo
quieto, mesmo silêncios e ausências. Izidine se atestava de dúvida.
Na noite anterior, o velho-menino já o tinha poeirado o suficiente.
Navaia Caetano lhe pedira que escutasse o mar. Porque, para além do
marulhar, lhe haveriam de chegar gritos humanos.
—
Gritos? — perguntou Izidine. —
Gritos de quem?
— Dos
falecidos — respondera Caetano.
E
não mais disse. O polícia se intrigava. Porque, agora, Marta Gimo
lhe solicitava quase o inverso.
— Ontem
me pediram para ouvir. Você me pede o contrário.
—
Pediram para ouvir o quê?
Repetiu
o enigmático conselho de Navaia. O que queria ele dizer? Bem que
Marta o poderia ajudar nesse esclarecimento. Mas ela sorriu, negando
com a cabeça. A enfermeira se fazia de cara. Izidine voltou a
pedir-lhe. Por fim, ela acedeu. O que o velho dissera foi que, sob o
ruído da rebentação, se escondiam vozes de naufragados, pescadores
afogados e mulheres suicidadas. De entre esses lamentos lhe haveriam
de chegar os gritos do próprio Vasto Excelêncio. O polícia sorriu,
desdenhoso. Marta lhe corrigiu o cepticismo:
— Está
a ver a sua arrogância? Pois fique sabendo que, todas as manhãs, o
morto grita o nome do assassino.
— Não
posso crer.
— Todas
as manhãs o morto clama juras de vingança.
Agora,
sentado junto à rebentação das ondas, o inspector lembrava as
palavras da enfermeira. E sorria. Quem sabe Marta tinha razão? Ele
estudara na Europa, regressara a Moçambique anos depois da
Independência. Esse afastamento limitava o seu conhecimento da
cultura, das línguas, das pequenas coisas que figuram a alma de um
povo. Em Moçambique ele ingressara logo em trabalho de gabinete. O
seu quotidiano reduzia-se a uma pequena porção de Maputo. Pouco
mais que isso. No campo, não passava de um estranho.
Levantou-se
e sacudiu a areia. Havia uma certa raiva no seu gesto, como se
quisesse sacudir não os grãos mas as suas próprias lembranças.
Caminhou sobre as rochas. Até que encontrou uma espingarda. Nem
sequer estava escondida. Parecia ter sido arrastada pelas ondas.
Procurou nas cercanias. Havia restos de paus. Como se fossem pedaços
de uma jangada. Uma embarcação ali? Se todos lhe tinham certificado
que aquelas águas eram inavegáveis!? Lembrou as palavras do velho
Navaia:
— O
mar aqui carrega mais traição que ondas.
Na
noite anterior, Navaia lhe contara uma história. Se passara, em
tempos, quando um velho tentara fugir por mar. Improvisara uma
jangada e se fizera à água. Mas as rochas e o mar, como que por
magia, trocaram aparências. Aquilo que o fugitivo acreditava serem
ondas, de repente, se solidificavam, empedernidas. E os penedos se
dissolviam, liquefeitos. A embarcação se desamantelou. Sem desfecho
ficou o velho que sonhara evadir-se.
Navaia
tirava estória de sua imaginação? Houvesse ou não uma inventada
história, o certo é que aquele mar não dava conselho para viagem.
A história da jangada era, afinal, verdadeira? Seria aquele um resto
material dessa frustrada fuga? A suspeita enrugou a testa do
inspetor: alguma coisa lhe escondiam. Distraído, nem notou que a
noite estava já caindo. Rapidou-se pelo caminho de regresso. Aquela
noite, tinha marcado encontro com o velho português, Domingos
Mourão. Esperou-o no pátio mas o outro se demorou. O polícia se
sentou na amurada do forte sentindo, ao fundo, o rumor do oceano. De
repente, acreditou ouvir reais vozes junto à praia.
— Esse
barulho não são pessoas.
Era
Marta que se chegava perto, vinda do escuro, embrulhada em capulana.
Se aproximou, parando junto dele. Ficaram como sentinelas
silenciosas, junto à fortaleza.
— Será
o mar que faz esse ruído?
— O
mar também não é. Esse barulho é a própria noite. Você, lá de
onde vem, há muito que deixou de ouvir a noite.
Depois
ela se sentou, cobrindo as pernas com a capulana. Começou, então, a
entoar em surdina uma antiga canção de embalar. Izidine foi levado
para longe, para fora do acontecível.
— Minha
mãe me cantava essa mesma melodia.
Mas
Marta já não estava ali. Ela se retirara, sombra vadia. O polícia
ficou ainda um tempo, tentando decifrar os sons que chegavam da
rebentação. Os olhos lhe começaram a pesar e acabou vencido pelo
sono. Despertou, minutos depois. Uma mão lhe chamava à realidade.
Era o velho português:
— Venha
ver o mar daqui de cima!
Domingos
Mourão se aprontava num banco de pedra, junto à árvore do
frangipani. E assim, olhos postos no horizonte, lhe perguntou:
— O
senhor me perdoe a indelicadeza. Será que nasceu perto do mar?
Izidine
negou. O português disse que ouvira falar de uma terra longínqua em
que os velhos se sentavam, de noite, ao longo da praia. Ficavam assim
em silêncio. O mar vinha e escolhia quem ia levar.
— Quem
sabe se, esta noite, sou eu o escolhido?
E
o velho português fechou os olhos, se internando num silêncio
demorado. Depois, falou.
Mia
Couto, in A varanda do Frangipani
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