Leio
A conjura, primeiro romance do angolano José Eduardo
Agualusa, lançado em 1988 e enfim entregue aos leitores brasileiros
(editora Gryphus). Uma suposição marca (atrapalha) minha leitura:
diante de um livro de estreia, espera-se que o crítico se coloque na
tripla posição de decifrador competente, avalista autorizado e juiz
rigoroso. Isto é, que leia o que ninguém consegue ler, que ateste e
autorize um destino e que julgue sua potência.
Essa
noção dominante aproxima a crítica literária da ciência, do
sacerdócio e do direito. Mas a afasta da literatura. Quando lê um
primeiro romance, mais do que nunca, faltam ao crítico os
antecedentes com que possa confrontar e medir o que lê. Resta-lhe a
mão vazia. Ele trabalha muito mais com a cegueira do que com a
visibilidade.
Nesses
casos, o crítico deve se colocar, ao contrário das boas regras, na
posição submissa de aprendiz. Isso não quer dizer que sua leitura
seja inocente, tampouco assegura a pureza de suas ideias. Quer dizer
apenas que, diante de um primeiro livro, o crítico se vê obrigado a
exercitar, mais que nunca, o fundamento de qualquer leitura: a
capacidade de se assombrar.
Sei
que a posição que defendo não é dominante. Alguns a descartam
como fantasiosa, medrosa e submissa. Recentemente, em um debate
literário, uma senhora da plateia – depois de se desculpar, como
se fizesse uma observação quase obscena – me perguntou se não
acho que minha posição diante da literatura é “feminina”.
Existem
muitas superstições a respeito da suposta “passividade” das
mulheres. Basta ler escritoras como Clarice Lispector, Virginia Woolf
e Florbela Espanca, porém, para entender o quanto o feminino é,
também, feroz e contundente.
Inverto
a observação da gentil senhora. Penso que minha posição como
leitor e (consequência, e não causa) como crítico se pauta por
alguns atributos essenciais do masculino. Quem é o pai senão aquele
que, apesar do papel de chefe e de provedor, está predestinado
(basta ler os gregos) a ser “assassinado” pelos filhos? O que
define um homem não é, enfim, sua morte?
Assim
também acontece com o crítico, e não só com ele, mas com qualquer
leitor. Se ele se deixa invadir pelo que lê (posição supostamente
feminina), se aceita os pedidos e caprichos do texto (posição
supostamente do homem), só assim ele chega, enfim, a ler um livro.
Explico bem o que entendo por isso: a “sofrer” do livro, e não a
dominá-lo.
Em
A conjura, Agualusa narra os primeiros dias de uma nação,
Angola. No século XIX, uma terra ainda a inventar. “Angola era
terra de muitas e variadas mortes”, narra, “ruim para tímidos e
para fracos”. Nessa colônia distante, onde um agricultor manda
assar uma escrava para dar de comer a seus cães, os nascimentos vêm
marcados pela fúria da morte. O passado é uma maçaroca de lendas e
de crimes. O presente é um buquê de espinhos.
No
romance de Agualusa, os personagens se misturam e se desencontram,
como que perdidos em uma selva. Todos os projetos da colônia se
resumem a um: o desejo de pacificação. Única forma de esboçar uma
verdadeira independência. Estranho caminho: para pacificar é
preciso fazer a guerra.
Nascimento
remoto não só de uma nação, mas de um escritor, A conjura
ilustra a luta de Agualusa para domar sua agitação juvenil,
pacificar seus conflitos interiores e esboçar um retrato de si.
Debruçado sobre Angola, ele aprende quem é.
Nas
lutas do século XIX, o contrabando de armas alimenta os pequenos
crimes, com que, enfim, as batalhas se decidem. Também Agualusa
contrabandeia heranças do Realismo, da narrativa histórica, do
romance de formação. A estreia é sempre um assalto ao passado.
Todo escritor nasce de outros e escreve com as mãos sujas de sangue.
Hoje,
jovens escritores afirmam – como se isto fosse um ato de coragem –
que não gostam de ler. Pior: que não precisam ler. Supõem que essa
recusa basta para livrá-los das heranças e dos antecedentes.
Apegados à fantasia do nascimento absoluto, repetem, sem saber, as
fórmulas antigas. Deviam ler Agualusa, para quem o passado é a
estrutura do presente. Sem ele, a realidade desaba.
No
século XIX, Angola paga um preço doloroso ao progresso. Uma nação,
conforme avança, se destrói. A vida se torna mais complexa e menos
ingênua. Também escrever um primeiro livro é desconstruir-se, isto
é, livrar-se do que “naturalmente somos”. Nada há de natural na
literatura. Não se escreve sem, antes disso, destruir um mundo.
Em
A conjura, o que sobra do velho projeto “natural” se
encarna no papagaio Manaus, que Alicinha herdou do pai. Um bicho
idoso, que perdeu as penas da cauda, rouqueja e está quase cego.
“Ademais tropeçava nas palavras, confundia as coisas.” Mais que
o corpo, é a linguagem que, despida de sua ilusória bondade, passa
a nos falhar. Só quando revira e torce a linguagem, um escritor
começa a escrever.
A
literatura não se interessa pela civilização e pelo progresso. Ela
não é a montagem de ideais, mas, ao contrário, sua desmontagem.
Nada assegura que um romance escrito no século XX seja superior (um
“avanço”) a um romance do século XIX. A literatura é
indiferente à lógica dos relógios. É extemporânea.
A
cada palavra que escreve (que lhe sai), o escritor desmente a palavra
planejada. Nos livros de estreia, ainda temerosos de se arriscar, os
escritores em geral se agarram aos ideais antigos de boa educação,
desenvolvimento e progresso. Ocorre que as torrentes da escrita são
mais fortes. Se o autor escreve para valer, elas logo o arrastarão
para fora de seu caminho. A isso se pode chamar de destino.
O
projeto republicano da nova Angola se constrói à custa de dores
devastadoras. É entre destroços e costurando feridas que uma nação
se levanta. Também o escritor sofre de distúrbios que o ferem e
modificam. Fazer literatura é, um pouco, “assassinar” o primeiro
livro, destino de que José Eduardo Agualusa não escapa.
Ler
A conjura é penetrar nesse momento inicial, em que as lições
de escola e os ideais ainda comandam. Ao crítico sereno, resta
seguir os primeiros passos do jovem escritor e aprender com eles um
novo modo de nascer.
José
Castello, in Sábados inquietos
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