quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

O conserto da carroça

Naquele dia Amâncio não exagerou na bebida, não teve tempo. Pelo meio da tarde, no voltar da carroça, um dos da tapera saltou na esquina do beco, endireitou a roupa e rumou para a venda. A festa lá dentro parece que o desconcertou: ele parou na porta, fez menção de voltar, reconsiderou. Amâncio pulou o balcão e veio recebê-lo.
Grande honra! Dê as ordens, major.
Sem ligar à recepção, o homem entrou e olhou em volta, como querendo dizer que havia gente demais. Os outros entenderam o olhar, foram se levantando, espreguiçando, bocejando, coçando as costas, numa tentativa ingênua de dar a entender que iam sair porque queriam e não por estarem sendo expulsos. O homem arredou-se da porta para desimpedir a saída, e quando a última pessoa passou, ele olhou para o fundo da venda para ver se não restava alguém, depois chegou-se à porta e olhou o beco, não queria ver ninguém marombando nas vizinhanças; satisfeito com a inspeção, entrou e fechou a porta, como se fosse o dono da venda e Amâncio um simples acompanhante.
A conferência reservada não durou muito. As pessoas que tinham ficado escondidas na esquina olhando de meia cara viram os dois saírem discutindo, Amâncio falando mais, falava até enquanto passava a chave na porta, o outro só contribuindo com frequentes inclinações de cabeça entremeadas de frases curtas. Vendo que eles iam subir o beco, os espias debandaram depressa, ninguém queria ser apanhado naquele papel.
Quando alcançaram a casa de Manuel Florêncio, o homem da tapera parou como querendo entrar, Amâncio tomou a frente vedando a passagem. O homem quis afastá-lo, Amâncio empurrou-o delicadamente, mas com firmeza. Agora os papéis estavam trocados, quem mais falava era o outro, e Amâncio concordava de cabeça, sempre conduzindo o outro pela rua, o outro virando-se para trás quase fincando os calcanhares no chão para não ser empurrado. Por fim ele se conformou, Amâncio parece que venceu, eles continuaram a caminhada. Na ponte se despediram, Amâncio voltou muito preocupado, passando por pessoas conhecidas sem notar, não cumprimentando nem respondendo cumprimento, dando topadas frequentes e não ligando.
Nesse estado de espírito entrou em casa de Manuel Florêncio, entrou bufando, pisando forte. Parou no meio da oficina, pôs as mãos nos quadris e estourou:
Você, hein? Com a sua mania de independente!
Manuel parou o serviço, olhou-o intrigado, esperou.
Por que você não consertou a carroça?
Então era aquilo. Que tinha Amâncio a ver com o assunto?
Não consertei nem conserto. Cada um sabe o que faz — disse Manuel, e voltou a cepilhar, desinteressado da conversa.
Cada um sabe o que faz, uma penca. Se você soubesse, não tinha sido testudo.
Manuel largou o cepilho com brutalidade, ergueu a cabeça e disse taxativo:
Amâncio, você manda na sua venda. Eu mando no meu serviço. Disso não abro mão.
Amâncio sacudiu a cabeça desarvorado, rodou na sala, parou no mesmo lugar.
Está brincando com fogo, Manuel. Os homens estão por aqui com você. Com muito custo arranjei que dessem mais um prazo até amanhã. Você tem de consertar o diabo daquela carroça até amanhã, nem que seja preciso trabalhar de noite. Eu posso ajudar.
Manuel olhou firme para ele, de repente soltou uma gargalhada rara, pura, honesta; e tão forte que espantou um burro que pastava em frente.
Está aí uma coisa que eu queria ver — disse ele ainda rindo. — Alguém me forçar a fazer um serviço que eu refugo. Só tem um jeito, Amâncio. É muitos homens me sojigarem, outros segurarem minha mão com as ferramentas e fazerem os movimentos por mim. Já pensou o trabalho que sai?
Amâncio experimentou nova tática:
Somos amigos de muito tempo, Manuel…
Somos. E o que é que tem isso? Você por acaso…
Deixe eu falar. Somos amigos de muito tempo. Eu vim aqui pedir um favor. Conserte a carroça para mim.
Manuel apanhou novamente o cepilho, limpou os cavacos da fenda, falou:
Quanto mais escuto falar em carroça, mais enjoo tomo de tudo quanto é apetrecho de roda. Não tenho nada com carroça, não mandei ninguém carregar areia em carroça, quem mandou que conserte. De mais a mais, não engulo aquela gente. E se você é amigo mesmo, não me fale mais nesse assunto.
Amâncio não se conformava. Insistiu, ameaçando:
Quer dizer que não conserta mesmo? Quer dizer que vai aguentar o repuxo? Posso lavar minhas mãos?
Manuel chegou à janela, cuspiu para fora, voltou.
Vocês são engraçados. Trabalho aqui o ano inteiro, ninguém quer saber se estou bem ou se estou mal, se estou comendo ou fazendo cruz na boca. De repente aparece aí um diabo de uma carroça quebrada e todo mundo fica em cima de mim insistindo pelo conserto, azucrinando e falando em castigo. Vou consertar carroça nenhuma. Vou escrever um letreiro bem grande ali na parede dizendo: esta oficina não aceita conserto de carroça. Assim, ninguém precisa perder o latim. E aguento qualquer repuxo, sim senhor. Ora essa! Em que terra nós estamos? Onde estão os meus direitos? Quem não deve não teme.
Aí é que está o seu erro. Você fala como se não tivesse acontecido nada. Direitos? Que direitos! Quem não deve não teme! Tudo isso já morreu. Hoje em dia não é preciso dever para temer. Por que é que você acha que eu estou aqui pedindo, implorando, me rebaixando? Eu devo alguma coisa? E você já me viu com medo algum dia? Você precisa entender que não estamos mais naquele tempo…
Amâncio parou de falar, chegou à janela, olhou o largo com interesse, como quem se despede de um lugar antes de uma viagem demorada, com o cavalo já na porta arreado e o arrependimento de ir já doendo por dentro; e continuou falando para fora, indiferente à presença de Manuel Florêncio:
Quem havia de dizer que Manarairema ia mudar em tão pouco tempo? Antigamente a gente vivia descansado, sossegado, dormia e acordava e achava tudo no lugar certo, não era preciso pensar nada adiantado. Hoje a gente pensa até para dar bom-dia. O que foi que fizemos para acontecer isso? Manuel, estamos mal.
Manuel olhou-o meio comovido, meio desconfiado. Aquele lado novo não esconderia alguma armadilha? Amâncio segurou-o pelo ombro e disse, quase implorando:
Precisamos ficar muito unidos, compadre. Vamos atravessar uma quadra de muita dificuldade.
Mas Amâncio, por que agora? Ou você está assustado com alguma outra coisa?
Amâncio baixou a cabeça e disse em voz mais baixa:
Você sabe o que é que eu estou dizendo. Não pensei que chegasse a esse ponto, mas chegou. Caímos na ratoeira, e por enquanto não vejo saída.
Não sei de nada. Você não está exagerando?
Quem me dera que fosse tudo uma brincadeira, daquelas que a gente fazia antigamente. Mas eu estive lá. Antes não tivesse estado.
Ficaram calados por algum tempo, absorvendo a realidade de uma situação que eles nada tinham feito para criar e que nenhum deles sabia como remediar.
O silêncio do largo lembrava a tranquilidade antiga, mas vinha misturado com uma espécie de cheiro de perigo iminente. Uma borboleta grande azul-pomposa entrou tonta na oficina, esbarrou de raspão na parede, pousou no cabo de uma enxó. Os dois olharam para ela encantados, como se nunca tivessem visto uma borboleta igual, ou talvez estranhando que ainda pudesse haver borboleta no ar. Finalmente ela se despregou da enxó, tateou pela sala e escapuliu para o largo como chupada pelo ar da tarde, e eles ficaram mais tristes e preocupados.
Manuel respirou e disse com esforço, quase espremendo as palavras:
Resolvi consertar a carroça.
Quebrando uma sua praxe antiga, Amâncio abraçou-o demoradamente, quis falar mas apenas engrolou algumas palavras que não chegaram a ser entendidas.
José J. Veiga, in A hora dos ruminantes

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