Para
Ana Lúcia Trevisan
Na
semana passada, tarde da noite, lia à mesa de um bar um conto de um
escritor argentino quando um homem da minha idade se aproximou de mim
e engrossou:
“Sou
um leitor e vim acertar as contas com você.”
Ia
perguntar alguma coisa, mas ele prosseguiu, com voz áspera:
“Por
dois motivos: o primeiro, é que você me excluiu do seu romance. O
segundo, e o mais grave, é que você matou meu pai nesse mesmo
romance.”
Fechei
o livro e encarei com receio aquele intruso que falava com a
disposição de um inimigo. Não sei como, uma voz saiu de dentro de
mim:
“Você
foi excluído? Eu matei seu pai?”
“Isso
mesmo. Seu romance é um relato calunioso, uma grande mentira. Eu sou
o terceiro irmão, que você ignorou de uma forma vil. Além disso,
meu pai continua vivo. Meu pai… É um absurdo o que fez com ele.”
O
vidro das duas janelas do bar estava embaçado; mesmo assim, procurei
com os olhos um recorte da noite, tentando entender se era verdade o
que eu acabara de ouvir ou se, de fato, aquele leitor estava a três
palmos do meu rosto.
Chuviscava
em São Paulo. Ninguém na calçada; o garçom havia sumido. O vento
frio entrava pela única porta aberta. Pensei: devia ter ido embora
quando o bar estava cheio de gente. Em São Paulo o último crime
nunca é o último. Alguém está morrendo neste instante, alguém
dispara uma arma e amanhã essa notícia será velha e inútil. Ia
tomar um gole de conhaque, mas minhas mãos tremiam e achei prudente
não revelar meu medo. Sem olhar para o intruso, me levantei com uma
calma fingida. O conto que tinha lido me deixou mais confuso e
medroso. Percebi que estávamos sozinhos; quase ao mesmo tempo
percebi que o homem era muito mais forte do que eu. Por um momento —
talvez cinco segundos —, pensei que a conversa, depois das
acusações, chegara ao fim.
Um
bêbado soltou um grito em algum lugar do quarteirão, e esse som me
distraiu e aliviou um pouco. Depois o silêncio, o rosto ameaçador
diante de mim. De repente, o homem enfiou a mão direita no bolso do
casaco e em seguida abriu a outra mão com um gesto de mágico que me
pareceu patético. Vi uma lâmina enferrujada na mão aberta e ouvi
uma sentença em voz grave:
“Para
um mentiroso e covarde como você, não há saída.”
Assustado,
apenas murmurei: “Há uma”.
Fechou
a mão, apontou a lâmina escura no meu peito; olhou furtivamente
para a porta e perguntou com desprezo:
“Qual?”
“Escrever
outro livro, incluir um terceiro irmão na trama do romance e
ressuscitar seu pai.”
E
assim fiz, escrevendo como um louco durante a madrugada, escrevendo
quase sem fôlego até o amanhecer, quando enfim me livrei do
pesadelo.
Milton
Hatoum, in Um solitário à espreita
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