A
superstição meridiana ainda é viva e forte no Brasil. Tanto quanto
em Portugal e Espanha de onde a tivemos.
Não
sei da porcentagem que poderia caber aos incas, astecas e maias por
uma crendice referente ao Sol no zênite, perdurando nas populações
ameríndias. Não conheço lenda referente ao meio-dia entre os
nossos amerabas. O salmo 91,6 cita o Demônio do Meio-Dia, daemonio
meridiano, tão de recear-se quanto a calamidade mortífera
ocorrente nessa hora: – a pernicie quae vastat meridie.
Sobrevive na imaginação coletiva a vaga imagem demoníaca, liberta
do Inferno e operando na coincidência horária.
No
Meleagro (Rio de Janeiro, 1951), divulgo uma Oração do
meio-dia com força de atração amorosa. As pragas irrogadas a
essa hora são de eficácia indiscutível. No Relógios falantes,
D. Francisco Manuel de Melo registra a versão obstinada: – Velha
conheci eu já, que ensinava às moças que as pragas rogadas das
onze para o meyo dia erão de vez, porque todos empécião.
Também, na face benemérita, as súplicas são atendidas desde que
coincidam com o coro dos Anjos, cantando as glórias a Deus,
justamente no pino do meio-dia.
Hora
sexta, parada e morna para os romanos que a temiam. Hora sexta,
criando a sesta. Na Grécia, silenciavam cantigas e avenas pastoris
porque era a hora em que Pan, o grande Pan, adormecia, farto de
correrias. Interrompido o sono, pagaria caro o atrevido perturbador.
Na campina de Roma respeitava-se a sesta dos deuses silvestres
fatigados. Na Idade Média era possível ouvir-se o fragor
tempestuoso da cavalgada fantástica, seguindo o caçador eterno,
Wuotans Heer, das wütende Heer, infernais. As pedras
deslocam-se na França. O homem das águas rapta as crianças na
Morávia, repetindo as Nereidas gregas e a Poledinice da Boêmia.
Surge em Palermo a feia Grecu Livanti. O Demônio do Meio-Dia
persegue nas montanhas as mulheres de Creta. Um espectro feminino
ronda a pirâmide de Keops. Em Portugal, o Homem-das-sete-dentaduras
aparece no Cerro Vermelho, Algarve, ao meio-dia como, de sete em sete
anos, corre a Zorra de Odeloca, a Berradeira, espavorindo a região.
No dia de São João o Sol dá três voltas ao meio-dia e está
cercado por nove estrelas fiéis.
Para
nós, brasileiros do sertão, o redemoinho, os súbitos pés de
vento, a poeira que sobe, brusca, diante das portas, o canto
estridente do galo, os rumores inexplicáveis no telhado, nas
camarinhas sombrias, nos alpendres solitários denunciam presenças
misteriosas e sobrenaturais.
É
uma das horas abertas em que o Diabo se solta. Os
doentes pioram. Os feitiços ganham poderio nas encruzilhadas
desertas.
Não
pragueje, não cante alto, não assobie, não abra os braços quando
os ponteiros do relógio estiverem de mãos postas.
Notem
que é uma hora estranha, imóvel, com um arrepio sinistro nas
folhas, tangendo os animais lentos. Hora em que o cão se enrosca
para não ver os fantasmas. No sertão, hora das miragens, do falso
rumaceiro nos capoeirões, denunciando um fogo inexistente. Trote de
comboio, obrigando o viajante volver-se para identificar invisíveis
caminhantes.
Os
animais reais dormem, escondidos nas sombras das malhadas. Os
encantados galopam procurando apavorar os caminheiros do sol a
pino. Relincho de cavalo que ninguém enxerga. Uivo de raposa que não
nasceu. Bafo de coivara, sopro quente de braseiro, jamais localizado.
Vento que passa açoitando as árvores e deixando os galhos imóveis,
recortados em bronze.
Cuidado
com o mal que desejar nessa hora fatídica. Voto, praga, invocação,
esconjuro têm projeção mágica.
Todos
os ocultistas recordam a batalha astral entre l’abbé
Boullan e Stanislas de Guaita, combate de magia negra, à coups
d’envoûtements, duelo a distância, sem pausa e sem mercê.
Boullan sucumbiu acusando Stanislas de Guaita de havê-lo assassiné
astralement. As horas preferidas foram sempre meia-noite e
meio-dia. Valem tanto para a feitiçaria, macumba, catimbó, a hora
do sol a pino como a meia-noite tenebrosa.
Mas
é hora poderosa para as orações benéficas. Rogos, promessas,
súplicas, pelas horas que são. Nunca a Igreja regulou esse
horário que é superstição milenar, trazida pelo europeu para o
continente americano. Não se verificou que as culturas
pré-colombianas a tivessem motivado.
Certas
rezas assumem valores surpreendentes quando ditas no pino do
meio-dia. Ditas de pé e sem telhas acima da cabeça, ao ar
livre, ao Sol. Explicam a intervenção prodigiosa pela obediência
inarredável ao toque do meio-dia. Batendo o relógio as doze
badaladas quando o devoto está orando, há convergência de fatores
imponderáveis para o êxito. Nunca perdi um meio-dia
justificava-se alguém de um acontecimento venturoso, solução
vitoriosa, em antiquíssima e semiperdida questão. De um funcionário
estadual a quem o Governador parecia perseguir tenazmente e sem
visíveis vantagens ouvimos: – Ele não pode com a reza do
meio-dia!, feitas pela mulher, teimosa e crente.
– Só
temo neste mundo a revólver descarregado e praga ao meio-dia,
dizia-me um professor eminente, veterano de gerações.
Demônio
do Meio-Dia chamavam ao Rei Filipe II da Espanha. Mas para o povo é
bem outra a força miraculosa em sua ameaça imortal.
Luís
da Câmara Cascudo, in Coisas que o povo diz
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