Admiro
a coragem dos atores. Alguns são tímidos, estremecem antes de
interiorizar outro caráter e já não são eles mesmos quando
representam uma personagem que em nada lhes assemelham.
Quando
morava na França, fiz um teste para trabalhar num filme amador e,
por azar, fui selecionado. Eu era pouco mais que um figurante, devia
participar de duas cenas que duravam uns três minutos. A filmagem
foi um calvário: fiquei gago, esqueci trechos do texto que havia
decorado e ensaiado, como se as palavras tivessem sido apagadas da
minha memória; não sei se foi uma falha da memória ou medo diante
da câmera.
O
fato é que eu jamais poderia ser ator, nem mesmo um ator mudo,
encenando apenas com gestos e com o olhar. Naquela época comecei a
sondar de onde vinha minha aversão a uma lente dirigida para mim.
Não era aversão, e sim medo.
O
medo é uma das lembranças mais fortes da infância. Eu ouvia
histórias de crianças que tinham se afogado no rio Negro ou no
Amazonas, crianças que saltavam do galho alto de uma árvore,
mergulhavam num rio e nunca mais apareciam. Diziam que elas tinham
sido devoradas por bichos gigantescos, peixes fantásticos que
abocanhavam suas pequenas vítimas e as arrastavam para um lugar
profundo e escuro. Essas histórias eram contadas em casa, e aos
cinco anos de idade você acredita em tudo.
Lembro
o domingo em que fui com meus pais a um dos balneários de Manaus, um
clube de campo banhado por um rio de águas limpas e pretas. Um
tronco comprido unia as extremidades do igarapé, e minha mãe teimou
em tirar uma foto do filho sentado no meio dessa ponte estreita e
precária. Meu pai me conduziu ao lugar indicado pela fotógrafa.
Sentei no centro da ponte, meus pés nem roçavam a água. Quando meu
pai se afastou, tive a impressão de que as margens do rio estavam
muito longe de mim. Não conseguia olhar para baixo, o rio era um
abismo tenebroso. Então ouvi minha mãe gritar: “Ri, filho. Ri e
olha para cá”.
Não
ri, e quando olhei na direção da voz, vi o cabelo da fotógrafa, o
rosto tapado por uma câmera enorme. O olho de vidro era também
enorme, tudo era enorme naquela manhã de sol, inclusive meu medo. Eu
não sabia nadar. E, no momento em que estava sendo fotografado,
recordei as histórias de crianças afogadas e depois engolidas por
um bestiário fluvial. Em poucos segundos, senti mais medo do que
sentiria nas futuras brigas de rua, nas batalhas bárbaras,
violentíssimas entre estudantes de escolas rivais durante o desfile
de Sete de Setembro; senti muito mais medo do que sentiria nas
passeatas e pichações na época da ditadura. Talvez por que o medo
na infância seja definitivo, profundo, único. Talvez por isso, o
mais traumático.
Quando
a fotografia foi revelada e ampliada, minha expressão de pavor
frustrou minha mãe, que desejava mostrar às amigas a imagem do
filho corajoso, rindo à beira de um abismo. A vaidade materna pode
gerar traumas no filho.
Aprendi
a nadar nas margens daquele igarapé, mas sem a presença de um olho
vigilante. Com o passar do tempo, percebi que não havia feras
fantásticas no fundo das águas, que a escuridão aquática era um
atributo da natureza e que era possível atravessar a nado aquele rio
que, na infância, tinha sido perigoso e ameaçador.
Um
dia percebi que o rio não era um abismo, mas então eu já não era
uma criança, nem acreditava em todas as palavras dos mais velhos.
Milton
Hatoum, in Um
solitário à espreita
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