Eles
chegaram e tudo ficou vermelho, desde o céu em cima da gente até o
chão embaixo dos pés, a poeira que eles levantaram. E não era um
vermelho qualquer, nem vermelho de flor ordinária, dessas que nascem
em toda ramagem, nem vermelho do sol que vai se pondo e esmaecendo em
outras cores, laranja, amarelo. Era um vermelho daqueles que sangram.
Eu já vi muito bicho sangrar. E eu sei como é. E aquela poeira que
eles levantaram no dia em que chegaram era esse sangue, esse pó de
sangue, que ora se ajuntava, concentrado, ora se espalhava se
agarrando a tudo, essa nuvem.
Eles
eram seis, cinco homens e uma mulher, e os cabelos brancos dela, uma
coisa de meter medo. Cabelos que rodopiavam. Lembro que foi a
primeira imagem que me encheu de medo. Como era possível que tivesse
cabelos de velha se velha não era? Eu não sabia. Mas sempre soube
que eles não eram de perto, da vila, dos sítios vizinhos. Suas
caras, seus corpos, seus jeitos de vestir e de falar pareciam de
muito longe, de um lugar que caminhava junto com eles. Certo que fui
poucas vezes ao povoado, e nessas ocasiões nosso pai sempre se
mostrava contrariado de que eu desobedecesse à ordem de não
levantar a cabeça, de não chamar a atenção dos outros, mas tudo
eu olhava bem olhado, de sobrolho que fosse, porque existir era olhar
e porque eu queria aprender tudo o que fosse diferente. E eu aprendo
depressa. Muito depressa.
Quando
nossa mãe e nosso pai ouviram o trovão da porta caindo aos nossos
pés, já era tarde, tarde demais. Nosso pai não teve nem tempo. Um
dos homens foi logo passando a lâmina do facão em pescoço de nossa
mãe e ela caiu de joelhos sobre o próprio corpo sem que tenha dado
um grito sequer, seu sangue jorrando como o leite que sobe na panela
e logo coagula, aquela nata. Cabeça rolando para um lado, os olhos
saltados para fora e bonc!
Ontem
mesmo eu acordei no meio da noite e achei que havia escutado de novo
o barulho da cabeça caindo. Isso acontece muitas vezes, acontecia
mais antes, no tempo de ser pequeno, mas é um ruído que não me
deixa, que não esquece de mim. Às vezes é tratável, abafado, e o
susto me faz apenas abrir os olhos. Mas há noites em que vem como um
estrondo e restruge como se caísse a trempe de panelas ou como um
trovão que ricocheteia morro após morro. Quando é assim, eu acordo
saltado, num pulo que me deixa ossos e carne inteira rija, as veias
todas saltando por debaixo da pele. Eu não gosto. Mas acontece.
Nosso
pai também não gritou. Rangia dentes e torcia olhos. Segurado pelos
homens, ele pôs nele mesmo um jeito de ser tão duro, que quem o
visse acharia que era de morte aquela dureza toda, uma armadura. Mas
morto ele não estava. Talvez com raiva, talvez apavorado. Quando
acordo no meio da noite pelo trovão da cabeça de mãe, é pai quem
se apodera de mim, a mesma couraça, semelhante madeiramento. Não
que eu já tivesse visto pai apavorado. Com raiva, sim. Mas
apavorado, nunca.
Morávamos
nos Gritos. E morar ali, era morar perto do fim do mundo. E morar
perto do fim do mundo é morar longe, perto de nada, numa terra sem
país. E nos Gritos havia a nossa casa, o grande tamboril no terreiro
e uma vastidão de nada vestida de um verde ralé, verde cinzento,
que não se atrevia a crescer contínuo em direção ao céu, verde
de mato ralo, de poucas árvores espaçadas umas das outras, sem dar
forma a qualquer floresta. Só quem já morou nos Gritos sabe o que é
viver numa terra sem país. De vizinho, só um velho fardado, que
morava umas seis léguas distante, vestido de uniforme de combate o
tempo todo, sob sol a pino ou chuva que caísse, ele de uniforme, com
sua cara de louco, só ele e um filho aleijado de braços e pernas.
De resto, chão e céu, e a paisagem.
Isso
era o comum.
A
gente é o povo dos Gritos, dizia nossa mãe insistente, quando se
dava a falar. Às vezes, ela chorava. Quando nosso pai sumia de
tempos em tempos e ela ficava lá naquela espera enorme dela, enfiada
naquela solidão sua, ela se aquietava. Mas é certo que ela se fazia
mais triste e mais chorava quando ele chegava de volta, sua lamúria
escondida no vestido, no braço que se torcia para enxugar lágrima e
ranho.
O
incomum foi aquilo.
Mãe
morta, pai debaixo dos pés dos outros e os gritos meus e do meu
irmão sendo arrastados para fora da casa. No terreiro, mijados de
medo, ficamos mudos, como que combinados de silêncio, não porque
tivéssemos a sorte da mudez de nossa mãe ou da indignação calada
do nosso pai ou ainda por possuirmos qualquer coragem, mas talvez
porque ver nossa mãe ali, morta, e nosso pai pisado, tenha nos feito
engolir a fala, como quando eu caí de costas da árvore e até quis
gritar, mas não pude, minha voz presa na caixa do peito me impedindo
de chamar por quem me acudisse.
O
medo da morte fede a mijo. Foi uma coisa que aprendi aquele dia.
No
pátio, a mulher me empurrou para cima de um dos homens com tanta
ignorância que um dente meu quebrou ao bater na arma dele.
Cadela!
Enquanto
isso, ela foi vasculhando a cabeça do meu irmão procurando algo que
não estava lá. Ao desistir dele, veio sobre mim, encontrando a
cruz, duas saliências cruzadas escondidas entre os meus cabelos. Uma
cruz. Era isso que ela procurava. Hoje eu sei que era isso, um sinal
de morte. Mas antes eu não sabia.
Sobreviver
pode ser um acidente ou uma arte. Eu, por mim, que já soube
sobreviver das duas formas, aprendi que se valer da arte tem mais
inteligência e verdade.
O
meu, o que é meu, ela disse num esgar de dentes contra meu pai. O
meu, o que é meu. E essa tua mulher aí, pasto de vermes, ponho
também na tua contabilidade, ela disse. Que Deus a tenha, essa tua
mulher, pobre Corália!
Eu
nunca havia escutado ninguém falar como ela. Pasto de vermes. E quem
falava assim com pai? Era o impensável. Mas o mais incrível é que
nunca eu ou meu irmão saberíamos que nossa mãe tivesse um nome.
Ela era mãe, e isso bastava. Mulher, na boca do nosso pai quando de
bons ventos. Imprestável, cadela, latrina, quando assomado de
ruindades. Nosso pai e nossa mãe eram de poucas conversas, de modo
que até ali sabíamos quase nada das palavras. Grunhidos, gritos,
pancadas. Comparado com hoje, sabíamos é um mundo muito pobre de
palavras e gestos, só a nomeação das poucas coisas que nos
cercavam. E não precisávamos de muito mais.
Micheliny
Verunschk, in O peso do coração de um homem
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