Fonte: Google Imagens
Lembro-me
da sala de visitas da casa do meu avô, num sobradão colonial, lá
em Minas. Era um vasto espaço luminoso, que se abria para a praça
da cidade em quatro portas envidraçadas que terminavam em sacadas de
ferro. O assoalho, de largas tábuas brancas, dizia sua velhice por
meio dos rústicos pregos de ferro feitos na bigorna. O teto,
esculpido em relevo, sugeria riqueza por meio de frisos dourados. Um
gigantesco espelho pendia, oblíquo, da parede dos fundos, duplicando
o espaço. Quadros a óleo nas paredes. Vasos importados e bibelôs.
Do meio do teto descia um lustre de cristal, que pendia sobre uma
mesa hexagonal de mármore. Portas de vidros coloridos, azuis,
amarelos, vermelhos, verdes, por onde o sol passava tingindo chão e
paredes. Sofá e cadeiras de palhinha, escondendo idade, tão novos e
intocados pareciam...
Quase
sempre vazia. Não era lugar de convivência cotidiana. Como seu nome
dizia, era sala de visitas. Por isso ficava bem na frente da casa, ao
final de uma escadaria de dois lances. Dialética de deixar entrar
sem deixar entrar. Estar dentro, mas quase fora, sem atingir a
intimidade. Visitas podiam entrar, mas não podiam penetrar. Os
segredos da casa ficavam assim protegidos... Ali se assentavam as
pessoas de cerimônia, em ângulos retos, os homens de pernas
cruzadas e botinas engraxadas, as mulheres de joelhos unidos.
Servia-se cafezinho com sequilhos, e a conversa acontecia dentro dos
limites de uma etiqueta silenciosa que todos respeitavam: “Em casa
de enforcado não se fala em corda.” Não se permitem tropeções...
Falava-se sobre política, eventos de conhecimento público, tempo,
decadência dos costumes, e cuidava-se para que não houvesse
silêncios. Os silêncios são sempre embaraçosos porque nunca se
sabe o que o outro está pensando...
Os
detalhes arquitetônicos podiam variar: havia casas ricas e casas
pobres. Mas a filosofia da sala de visitas era sempre a mesma:
mostrar o mínimo, elegantemente. O resto da casa – a vida que nela
havia – tinha que ficar protegido.
Mas
havia um outro lugar onde as visitas não entravam, lugar dos amigos:
a cozinha. Ali as pessoas se assentavam à roda do fogão, e o corpo
se libertava das regras da etiqueta. Espaço mágico presidido pelo
fogo, o corpo livre do controle do espelho, ali aflorava uma outra
verdade, pela sedução dos gostos e dos cheiros. O silêncio não
incomodava, porque na cozinha havia um “estar juntos” que
permitia a solidão, na encantada contemplação dos paus de lenha
que gemiam e desprendiam os seus sucos ferventes pelas frestas de
suas fibras. Os corpos experimentavam sua solidariedade com a comida,
e os pensamentos ficavam diferentes. Os pensamentos que nascem do
fogão não são os mesmos que vivem no espelho. O corpo na sala de
visitas não é o mesmo corpo que aparece na cozinha.
Para
ir até esse lugar, era preciso penetrar na casa; ele ficava longe da
fachada: não se abria para a praça pública, mas para a horta
murada. A cozinha ficava depois dos quartos e logo antes do banheiro:
lugares de intimidades distintas...
Quem
quer que tivesse inventado essa divisão do espaço da casa conhecia
os segredos dos espaços do corpo. Pois a casa é uma extensão do
corpo. Quem entra dentro de uma casa, entra dentro de um corpo... Os
construtores das velhas casas sabiam das coisas da psicanálise. Pois
ela diz que o corpo é assim. Tem uma sala de visitas luminosa onde
qualquer um pode entrar. Só que, saindo-se dela, vai-se de novo para
a praça pública. Vez por outra a cerimoniosa etiqueta é quebrada
por acidentes imprevisíveis: cheiros que passam pelas frestas e
trazem sugestões do que está sendo cozido no fogão; gemidos
abafados, não se sabe se vêm de porões de tortura ou de alcovas de
amor; crianças que irrompem correndo e fazem as perguntas proibidas;
tropeções involuntários que mostram os convivas em posições
inesperadas. Todos continuam gravemente assentados, a conversa
prossegue de acordo com as regras, mas sabe-se silenciosamente que,
se se penetrar lá dentro da casa, aparecerá uma outra verdade.
Também
a sociologia sabe disso. O sociólogo é uma visita indiscreta que
não se acanha em pedir para ir ao banheiro, não porque as pressões
fisiológicas o obriguem a isso, mas porque as pressões da
curiosidade não o deixam em paz. Diante das belas salas de visitas
que podem ser vistas da rua, ele se pergunta sobre o que acontece lá
dentro, onde a vista não alcança. Sabe-se que o visível é
mentiroso: fachada. Por isso não resiste ao convite de um buraco de
fechadura. Que haverá lá dentro, longe dos olhos? Uma inspiração,
uma orgia, um culto estranho, monotonia, pessoas transformadas em
lobisomens, clérigos em festins de amor?
“Os
mistérios sociais estão por detrás das fachadas”, diz Peter
Berger. Os mistérios das casas mineiras, os mistérios da sociedade,
os mistérios do corpo: tudo é muito parecido.
A
teologia, coisa humana, não se furta a essa dialética da casa. Há
uma teologia da sala de visitas e uma teologia da cozinha.
Na
teologia da sala de visitas se falam as coisas respeitáveis sobre os
mistérios de Deus, sobre os imperativos da ética, sobre as
realidades da política. Como jogadores de xadrez, os participantes
parecem absorvidos numa batalha – e por vezes os confrontos são
ferozes, ao ponto do famoso “ódio teológico”. Mas as
contradições de superfície escondem um acordo silencioso sobre as
regras do jogo. Não se pode falar nem sobre os cheiros que vêm da
cozinha, nem sobre os gemidos surdos de dor ou de prazer que se
ouvem, nem sobre os embaraçosos tropeços que acontecem, vez por
outra. Se, por acaso, uma criança travessa, ignorante das regras da
etiqueta, entra na sala e diz uma coisa imprópria, o pai a fulmina
com um olhar gélido, acolchoado em tonalidade paternal, que a reduz
a um obsequioso silêncio, sob pena de punições mais severas.
Cansei-me
da teologia da sala de visitas e moro agora na cozinha. A companhia
me agrada. Primeiro, Lutero assentado à mesa com Mellanchton,
bebendo sua cerveja. É dali que surge sua Tishrede, conversas ao
redor da mesa... Ah! Como é bom fazer teologia assim! Para ser
teólogo é preciso um pouco de loucura, pois Deus, quem quer que ele
ou ela seja, não é um pássaro preso na gaiola da razão. Não está
lá nos textos sagrados que a sabedoria de Deus é loucura? No
entanto – e esta é uma lição que se aprende da história da
igreja –, o fato é que todos os teólogos da cozinha têm sido
estigmatizados com as marcas da heresia. E é triste contemplar o
espetáculo dos teólogos da cozinha batendo nas portas da sala de
visitas, pedindo por favor que se lhes abram as portas porque eles
sabem jogar xadrez de acordo com as regras. Isso eu não faço mais.
Se o pessoal da sala de visitas quiser entrar até a cozinha, aceitar
ser seduzido pelos cheiros e gostos, concordar em beber um pouco de
vinho, permitir-se ser levado pela loucura do Espírito (em inglês –
deliciosa revelação semântica –, as bebidas alcoólicas têm o
nome de spirits...), então poderemos conversar. Não existe
nada de insólito nisso, pois, a se acreditar nos relatos inspirados,
na experiência do Pentecostes, quando os “possuídos” começaram
a falar línguas estranhas, o pessoal que estava na sala de visitas
pensou que se tratava de uma orgia. “Estão todos bêbados”, eles
disseram. Foi o que Hegel, esse estranho filósofo que tentou, sem
êxito, misturar a cozinha com a sala de visitas, compreendeu muito
bem, chegando mesmo a afirmar que “a razão é uma orgia bacanal na
qual nem um só dos participantes está sóbrio”. Lá está também
Feuerbach, que Marx malvadamente distorceu, dizendo que ele só
pensava com os olhos. Mas, para Feuerbach, os olhos estão a serviço
da boca, como acontece na cozinha. “Cada olhar é um olhar
desejante...” “Somos o que comemos”, ele dizia (“man ist
was man isst”). Lembro-me de que os lugares sagrados primitivos
não eram nem salas de visitas, nem salas de aula, mas altares:
fogões onde a carne era queimada. E os textos inspirados dizem que
Deus gostava do cheiro pacificante que deles subia.
Na
cozinha também se comem os caquis, coisa impensável na sala de
visitas. Podem imaginar as visitas de cerimônia, com as mãos e
bocas lambuzadas? Quem come caqui tem que aceitar ser criança. E,
como não existe salvação a menos que nos tornemos crianças (coisa
em que ninguém acredita...), tratei de fazer um ensaio de teologia
comestível com o título “Sobre deuses e caquis”. Alguns comeram
e gostaram. Outros comeram e não gostaram. Disseram que caqui não
combina com a gravidade do Ser divino. Alegaram que eu não levava
Deus a sério. Levo Deus muito a sério. Mas não levo a sério este
caqui delicioso que se chama teologia. Se eu tivesse falado sobre as
chagas de Cristo, tudo estaria bem. Feridas são respeitáveis;
combinam com o Ser divino. Penso diferente. Quem é grave é o diabo.
Ele se sente bem na sala de visitas. Mas Deus é Espírito, leve, faz
todas as coisas voarem e dançarem.
Tenho
a suspeita de que nossas conversas ecumênicas aconteçam sempre na
sala de visitas, governadas pela dialética do entrar sem deixar
entrar. Se se sentem cheiros culinários ou se se ouvem gemidos
reveladores, todos observam respeitoso silêncio. Também as igrejas
têm salas de visitas e cozinhas, só que nas cozinhas os visitantes
não podem entrar. E me veio a hipótese, que desejo explorar, de que
o respeitável discurso da ética e da política, que acontece
segundo a etiqueta da sala de visitas, é uma forma de silenciar um
outro discurso proibido, mal/dito: o discurso do amor.
A
fala do poder não nos causa embaraço algum. Sobre ela não paira
nenhum interdito. Tanto que, ao que me consta, as autoridades
eclesiásticas, até o momento, não lançaram proibições sobre os
rambos da vida nem sobre aqueles que se dedicam à fabricação das
armas. No entanto, pudicos parlamentares evangélicos se movimentaram
para que se retirassem, do salão do congresso, telas que mostravam
os seios nus das mulheres, enquanto conservadores e liberais
católicos se uniram para impedir a apresentação de Je vous salue,
Marie! Camisinhas de Vênus são terrores infernais maiores que a
violência do poder. Como disse alguém, censor é aquele que corta a
cena quando o mocinho beija o seio da mocinha e deixa a cena quando o
bandido corta o seio da mocinha. Brinco com a insólita possibilidade
de que o discurso político tenha a função não confessada de
silenciar o discurso erótico. É sintomático que, até agora, tanto
as teologias conservadoras quanto as revolucionárias não tenham
sido capazes de elaborar um discurso prazeroso, e muito menos um
discurso sobre o prazer. A ética e a política parecem-me ser a
continuação moderna do ascetismo que faz silêncio sobre as vozes
do corpo. O discurso do sacrifício vai muito bem na sala de visitas.
Teologia
ao redor do fogão: aquela que tem a coragem para penetrar nas
intimidades da casa. Claro que ela é embaraçosa. Mas penso que esse
é o único caminho para uma honestidade ecumênica. É preciso que
nos assentemos juntos ao redor do fogo para ali falar sobre o fogo
que queima dentro dos corpos que a sala de visitas congelou.
Rubem
Alves, in Se eu pudesse viver minha vida novamente
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