Saudade
de um tempo?
Tenho
saudade é de não haver tempo.
Dito
de Tizangara
Os
visitantes se arrumaram na vila: o ministro se estabeleceu na casa do
responsável local. Havia uma outra residência para o representante
das Nações Unidas. Mas o italiano preferiu ficar na pensão local.
Queria manter as independências, fora dos esquemas montados pelas
autoridades locais. Eu seguia as ordens, acachorrado com ele. E lá
fiquei residindo noutro quarto da pensão. Ao lado, para o que
viesse.
Massimo
Risi recusou que eu lhe levasse as bagagens e lá foi tropeçando
pelos buracos, com maltas de crianças lhe perseguindo e mendigando
doces.
—
Masuíti, patrão. Masuíti.
Eu
seguia atrás, respeitosamente. No enquanto, observava o estrangeiro:
como a alma dele se via pelas suas traseiras! Os europeus, quando
caminham, parecem pedir licença ao mundo. Pisam o chão com
delicadeza mas, estranhamente, produzem muito barulho.
Chegamos,
enfim, à pensão. Na fachada havia ainda vestígios dos tiros.
Buraco de tiro é como ferrugem: nunca envelhece. Aquelas ocavidades
pareciam recém-recentes, até faziam estremecer, tal a impressão
que a guerra ainda estivesse viva. Em cima da porta, sobrevivia a
placa “Pensão Martelo Jonas”. Antes, o nome do estabelecimento
era Martelo Proletário. Mudam-se os tempos, desnudam-se as vontades.
Massimo
entrou a medo para uma sala escura. Mil olhos esbugolhavam o branco
entrando na pensão. Frente a um balcão coberto de jornais antigos,
o italiano perguntou:
—
Pode-me informar quantas estrelas tem
este estabelecimento?
—
Estrelas?
O
recepcionista achou que o homem não entendia do bom português e
sorriu condescendente:
— Meu
senhor: aqui, a esta hora, não temos nenhumas estrelas.
O
estrangeiro olhou para trás pedindo meu socorro. Me adiantei e
expliquei os desejos do visitante. Ele queria conhecer as condições.
O recepcionista não se fez esperar:
— As
condições? Bom, isso é um pouco dificultoso porque, nesta fase, as
condições já não são planificadas antecipadamente.
Para
mais, há lugares em que a curiosidade não é muito aconselhável.
Anteceder-se ao tempo é coisa que só pode trazer azares. E o
anfitrião aconselhou: o hóspede que pousasse as malas e a alma. No
final de tudo, quando já estivesse de regresso, é que seria boa
ocasião para ele entender as chamadas “condições”.
— Aqui
só se sabe o que está acontecer quando já aconteceu. Está-me a
compreender, meu caro senhor?
O
italiano olhou o teto com ar de pássaro à procura de orifício na
gaiola. A pergunta nos pareceu tola mas o funcionário foi pronto na
resposta:
— A
pensão é privada, mas é do Partido. Isto é, do Estado.
E
explicou: nacionalizaram, depois venderam, retiraram a licença,
voltaram a vender. E outra vez: anularam a propriedade e, naquele
preciso momento, se o estrangeiro assim o desejasse, o hoteleiro até
podia facilitar as papeladas para nova aquisição. Falasse com o
administrador Jonas, que tinha mandos no negócio.
— Quer
comprar a pensão?
— Mas
que comprar?
— Agora
deve ser barato porque é época muito baixinha para o turismo. Com
essas explosões por aí não tem havido muita procura...
O
italiano virou-se para mim, como se, de repente, a lonjura se
abatesse nele:
—
Pode-me traduzir, depois?
A
convite do recepcionista lá fomos pelo obscuro corredor. O homem ia
explicando as insuficiências com o mesmo entusiasmo que outro
hoteleiro, em qualquer lugar do mundo, anunciaria os luxos e
confortos do seu hotel. E o italiano parecia se arrepender de alguma
vez ter querido saber: só havia eletricidade uma hora por dia.
—
Merda, será que trouxe pilhas
suficientes? — se interrogou.
Afinal,
eu estava dispensado de traduzir. Massimo sabia-se explicar e, pior
ainda, entendia o que lhe diziam. O outro prosseguia com as
condições:
—
Também não há água nas torneiras.
— Não
há água?
— Não
se preocupa, meu caro senhor: manhã cedo, havemos de trazer uma lata
de água.
— E
vem de onde, essa água?
— A
água não vem de nenhum lugar: é um miúdo que traz.
Chegamos
ao quarto destinado ao estrangeiro. Eu ficaria mesmo ao lado. Ajudei
o italiano a se instalar. O quarto tresandava. O hoteleiro, seguindo
à frente, dissertava sobre a variedade de fauna coabitando o mesmo
espaço: baratas, aranhas, ratos. No chão havia uma caixa. O homem
debruçou-se sobre ela e foi tirando objetos diversos:
— Esta
revista é para matar as moscas. Esta sola velha é para as baratas.
Esta bengala...
— Deixe
estar, eu resolvo.
O
recepcionista abriu as cortinas e uma nuvem de poeira se espalhou
pelo aposento. Passado um pouco tudo se tornou mais visível, mas o
italiano parecia preferir o escuro. Um líquido espesso escorria
pelas paredes.
— É
água, isso?
— Era
bom, mas conforme já mencionei, nós aqui não temos água.
O
recepcionista já se retirava quando se recordou de uma recomendação.
Desta vez, se dirigia a mim como se procurasse cumplicidade.
— Às
vezes, aparecem nos quartos uns insetos desses, sabe, que chamamos
louva-a-deus.
— Sei
o que são.
— Se
aparecer um desses não lhe mate — disse, dirigindo-se agora ao
italiano. — Nunca faça isso.
— E
por quê?
— Nós
aqui não matamos esses bichos. São nossas razões. Esse aí lhe
explicará depois.
Risi
não se chegou a sentar na solidão do quarto. Passou pelo meu quarto
e disse que iria dar uma volta. Precisava respirar e se apressou pelo
corredor. Vi-o afastar e, de novo, escutei os seus próprios passos
como se ele sozinho perfizesse uma coluna militar.
De
repente, o italiano tropeçou num vulto. Era uma velha, talvez a mais
idosa pessoa que ele jamais vira. Ajudou-a a erguer-se, conduziu-a
até à porta do quarto ao lado. Só então, face à intensa
luminosidade que escapava de uma janela, ele notou a capulana mal
presa em redor da cancromida vizinha. O italiano esfregou os olhos
como se buscasse acertar visão. É que o pano deixava entrever um
corpo surpreendentemente liso, de moça polpuda e convidativa. Era
como se aquele rosto encarquilhado não pertencesse àquela
substância dela.
O
italiano todo se arrepiou. Porque ela o olhava com encanto tal que
até magoava. Mesmo eu, que languçava a cena de longe, me arregacei.
Os olhos da velha continham frescuras e salivas de um beijo
prometido. A mulher, toda ela, cheirava a glândula. Podia uma velha
com tamanha idade inspirar desejos num homem em plenas faculdades?
Massimo Risi se apressou a sair. De passagem pela recepção,
aproveitou para recolher informações sobre a idosa mulher.
— Ah,
essa é Temporina. Ela só anda no corredor, vive no escuro, desde há
séculos.
— Nunca
sai?
—
Sair?! Temporina?!
O
recepcionista riu-se, mas logo se emendou. Vendo que eu me
aproximava, escolheu falar o restante comigo. Me acheguei, eu e o
italiano nos compadreamos, adjuntando nossos ouvidos. O hospedeiro me
fingiu segredar, sabendo que o outro escutava com gravidade:
— O
seu amigo branco que tenha muito cuidado com essa velha.
— Por
quê? — perguntou Massimo.
— Ela
é uma dessas que anda, mas não leva a sombra com ela.
— Que
é que ele está falando? — voltou a inquirir o italiano.
— Você
lhe explique, com devido tempo.
Saímos.
Na rua, o italiano pareceu ficar vencido pela frescura do fim de
tarde. As vendedoras do bazar já arrumavam as suas mercadorias e uma
imensa paz parecia regressar à interioridade das coisas. Risi
sentou-se no único bar da vila. Parecia querer estar só e eu
respeitei esse desejo. Me arrumei mais longe, tomando minha dose de
fresco. As pessoas passavam e saudavam o estrangeiro com simpatia.
Decorreram, inúmeros, os momentos e lhe perguntei se desejava
regressar à pensão. Não queria. Apetecia-lhe nada, simplesmente
ficar ali, longe do quarto, distante das suas obrigações. Sentei-me
a seu lado. Ele me olhou, como se fosse por primeira vez:
— Você
quem é?
— Sou
seu tradutor.
— Eu
posso falar e entender. Problema não é a língua. O que eu não
entendo é este mundo daqui.
Um
peso invisível lhe fez descair a cabeça. Parecia derrotado, sem
esperança.
— Tenho
que cumprir esta missão. Eu queria só receber a promoção que há
tanto espero.
— O
senhor vai conseguir.
— Acha
que vou saber quem fez explodir os soldados?
O
italiano estava num desfarrapo. Cabelos baldios, em desmazelo. Foi
então que apareceu um homem, todo maltrapilho, que a si mesmo fez
menção:
— Peço
desculpa, meus patrões. Peço falar com esse estrangeiro de fora.
— Que
se passa?
— É
que eu sou ligado com o falecido.
—
Falecido?!
— Esse
cabrito que foi pisado com o carro.
— E
então?
— É
que eu é que sou o dono desse cujo cabrito. E, agora, quem me
compensa?
E
fez os dedos roçarem uns nos outros, sugerindo a tilintação do
dinheiro. O italiano, felizmente, nem entendeu bem o que se passava.
Pedi ao dono do malogrado capríneo que voltasse mais tarde. Ele já
se retirava quando se recordou de algo e voltou atrás. Para meu
espanto, anunciou que meu pai chegara à vila. Primeiro, inacreditei.
—
Chegou. E se instalou lá na sua velha
casa.
Fiquei
surpreso. Ele que anunciara que nunca mais regressaria a Tizangara.
Agora, que eu estava envolvido naquela missão, residindo por
obrigação na pensão, agora é que ele decidia reinstalar-se no
lugar da minha infância?
O
italiano adivinhou a minha preocupação.
— Que
se passa?
— O
senhor não sabe o que significa a chegada de meu velho.
Sem
que desse conta eu me abria e confessava antigas lembranças ao
estrangeiro. Vantagem de um estranho é que confiamos essa mentira de
termos uma só alma.
Mia
Couto, in O último voo do Flamingo
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