Agora,
podemos admitir sem dificuldade que nada podia fazer prever aos
nossos cidadãos os incidentes que se produziram na primavera desse
ano e que foram, como compreendemos depois, os primeiros sinais dos
acontecimentos graves cuja crônica nos propusemos fazer aqui. Esses
fatos parecerão a alguns perfeitamente naturais e a outros, pelo
contrário, inverossímeis. Mas, afinal, um cronista não pode levar
em conta essas contradições. Sua tarefa é apenas dizer: “Isso
aconteceu”, quando sabe que isso, na verdade, aconteceu; que isso
interessou à vida de todo um povo, e que, portanto, há milhares de
testemunhas que irão avaliar nos seus corações a verdade do que
ele conta.
Aliás,
o narrador, que se revelará no momento oportuno, não disporia de
meios para lançar-se num empreendimento desse gênero se o acaso não
o tivesse posto em condições de recolher um certo número de
depoimentos e se a força das circunstâncias não o tivesse
envolvido em tudo o que pretende relatar. É isso que o autoriza a
agir como historiador. É claro que um historiador, mesmo que não
passe de um amador, tem sempre documentos. O narrador desta história
tem, portanto, os seus: em primeiro lugar, o seu testemunho; em
seguida, o dos outros, já que, pelo seu papel, foi levado a recolher
as confidências de todas as personagens desta crônica; e,
finalmente, os textos que acabaram caindo em suas mãos. Pretende
servir-se deles quando lhe parecer útil e utilizá-los como lhe
aprouver. Propõe-se ainda. Mas é talvez tempo de abandonar os
comentários e as precauções de linguagem para passar ao assunto em
si. O relato dos primeiros dias exige certa minúcia.
Na
manhã do dia 16 de abril, o Dr. Bernard Rieux saiu do consultório e
tropeçou num rato morto, no meio do patamar. No momento, afastou o
bicho sem prestar atenção e desceu a escada. Ao chegar à rua,
porém, veio-lhe a ideia de que esse rato não estava no lugar devido
e voltou para avisar o porteiro. Diante da reação do velho Michel
sentiu melhor o que sua descoberta tinha de insólito. A presença
desse rato morto parecera-lhe apenas estranha, enquanto para o
porteiro constituía um escândalo. A posição deste último era
aliás categórica: não havia ratos na casa. Por mais que o médico
lhe garantisse que havia um no patamar do primeiro andar,
provavelmente morto, a convicção de Michel permanecia firme. Não
havia ratos na casa, e era necessário que tivessem trazido este de
fora. Em resumo, tratava-se de uma brincadeira.
Nessa
mesma noite, Bernard Rieux, de pé no corredor do prédio, procurava
as chaves antes de subir para sua casa, quando viu surgir, do fundo
obscuro do corredor, um rato enorme, de passo incerto e pelo molhado.
O animal parou, pareceu procurar o equilíbrio, correu em direção
ao médico, parou de novo, deu uma cambalhota com um pequeno guincho
e parou, por fim, lançando sangue pela boca entreaberta. O médico
contemplou-o por um momento e subiu.
Não
era no rato que ele pensava. Aquele sangue fazia-o voltar à sua
preocupação. Sua mulher, doente há um ano, devia partir no dia
seguinte para uma temporada na montanha. Foi encontrá-la deitada no
quarto, como lhe pedira que fizesse. Assim, preparava-se para o
cansaço da viagem. Sorria.
—
Sinto-me muito bem — dizia.
O
médico olhou o rosto voltado para ele, à luz da lâmpada de
cabeceira. Para Rieux, aos trinta anos e a despeito das marcas da
doença, esse rosto era sempre o da mocidade devido talvez ao sorriso
que dominava todo o resto.
— Veja
se consegue dormir - disse. — A enfermeira vem às onze horas, e eu
vou levá-las até o trem do meio-dia.
Beijou
uma testa ligeiramente úmida. O sorriso acompanhou-o até a porta.
No
dia seguinte, 17 de abril, às oito horas, o porteiro deteve o médico
e acusou gracejadores de mau gosto de haverem posto três ratos
mortos no meio do corredor. Deviam tê-los apanhado com grandes
ratoeiras, pois estavam cheios de sangue. O porteiro ficara algum
tempo à porta, segurando os ratos pelas patas, esperando que os
culpados se traíssem por algum sarcasmo. Mas nada acontecera.
Albert
Camus, in A peste
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