A
sala do coração tem muitas janelas e duas portas, a que dá pra
dentro e a que dá pra fora. A que dá pra dentro está sempre
aberta. A que dá pra fora vive trancada.
Espalhadas
pela sala, as notícias do jornal de hoje, a bobagem dita ontem, o
Natal passado, o retrasado, a mula sem cabeça, o Banco Imobiliário,
uma febre, um sarampo, a enchente, o cometa Halley, um São João, um
jipe amarelo, a foto do casamento, o nascimento do filho, o velório
da avó, a festa do tetra, a desesperança do mundo, a expectativa do
próximo fim de semana e outras tralhas, cada qual lá, com sua
importância, acumulando poeira. Talvez se sintam meio tristes por
estarem virando memória, quadro, objeto na estante. Talvez se sintam
felizes. Quem sabe?
O
coração tem muitos quartos. No primeiro, logo o da frente, algumas
lembranças dormem, umas riem, umas mentem, outras doem. O bolo de
aniversário dos seus oito anos, não o dos sete nem o dos nove, o
olhar azul da avó quando entrava na ambulância, o primeiro beijo
(foi na escada?), a primeira mão que desceu mais um pouquinho, o
refrão daquela música que um dia embalou o final do seu namoro e
nunca, nunca mais vai tocar no rádio, a primeira vez que, sem
ninguém explicar, você juntou o nome à pessoa, e a palavra orgasmo
(tirada de alguma matéria de revista) legendou seu pensamento, uma
cama laqueada com um estrado tão atento que, no melhor da história,
por piada ou por recato, quase sempre desabava, aquele sapatinho de
bebê que só você sabe a cor exata e o exato pompom, o dia da
derrota do seu candidato, da sua ingenuidade, da sua felicidade, da
sua ignorância, da importância daquela pessoa, daquela outra, e
daquela, especialmente, que um dia já foi tanto, tanto, tanto.
O
segundo quarto é meio escuro e faz tempo que não recebe um vento. É
ali que estão guardados, em caixas, caixinhas, caixonas, envelopes,
sacolas, pelos cantos, uns entulhos e uns tesouros. Quase ninguém
entrou nesse quarto, além de você, e mesmo você só entra lá
muito de vez em quando. Imagine só que perigo deparar-se, assim de
repente, com aquela canção de ninar, um lápis de bandeirinhas
mordido na ponta, o apontador verde, o estojo, a máquina de escrever
do escritório do seu pai, uma barraca colorida de praia, o botão
número três do elevador de um prédio antigo, o nome que você
fazia com letras de macarrão ou o formato exato da boca do dono
desse nome, a primeira desilusão, o primeiro desapego, a primeira
devassa, uma tarde, numa praia, uma certeza insistente, a vontade de
que chegue amanhã, vai, amanhã, chega logo, amanhã vai ser uma
beleza.
O
terceiro quarto permanece fechado de dia e só se abre certas noites,
em alguns sonhos. Lá estão, entre outras tantas, coisas que não
fazem nenhum sentido aparente, pedaços, cheiros, fitas, mofo, uma
bacia de lata, um compacto simples, um cinzeiro laranja, uma mentira,
uma vergonha, um medo, um choro engolido, detalhes que nem você
sabia que existiam ainda, violentos assim, se é que eles ainda
existem (o coração às vezes também inventa um pouco).
O
último quarto, no fim do corredor, hoje em dia é só depósito. Um
dragão imenso, parado na porta, tenta parecer assustador, uma vez
que serve de vigia. Ou pensa que serve. Mal sabe ele que foi tirado
da fachada de um restaurante chinês, ou, na melhor das hipóteses,
de uma página de um livro de arte.
Ninguém
sabe até hoje o que tem dentro desse quarto, nem você, nem a sua
mãe, nem o seu psiquiatra. Enquanto o dragão fica lá convicto de
que você morre de medo dele, você continua convencido de que só
não entra ali pra não ter o trabalho de matar o coitado.
No
banheiro, antigo e grande, tem uma banheira que já foi oceano de
bonecos, uma cortina de plástico, alguns decalques (meio tortos)
descascados nos azulejos, um bidê muito importante e uma mania de
comer pasta de dente escondido dos outros.
Um
biscoito, que você mordia cuidadosamente pelas bordas para preservar
intacta a figura que tinha dentro (era uma árvore, parece), está
guardado na cozinha do coração junto com o cheiro do feijão da sua
avó e a esperança de que estivessem fritando batatas.
O
quintal está interditado. É campo minado. É um perigo. Deve ser
atávico. Ninguém precisa ter tido um quintal na vida pra saber a
alegria e a tristeza que podem causar uma cerca, um portão, uma
pedra, uma lagarta. Nunca visite o quintal do seu coração, não
corra esse risco, não cometa essa loucura, a não ser em caso de
extrema necessidade ou em dias de vento forte, raios, relâmpagos e
muitas trovoadas. Se você por acaso der de cara com você lá,
brincando, bem contente, a sua vida pode virar uma calamidade.
Adriana
Falcão, in O doido da garrafa
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