Arranjei
umas escritas à noite, para defender uns cobres extras. O emprego dá
pouco. Perto de casa, um escritório de contabilidade. Meu irmão:
— É,
já era hora de tomar juízo.
Meu
irmão só pensa em seriedade.
Cá
no bairro minha fama andava péssima. Aluado, farrista, uma porção
de coisas que sou e que não sou. Depois que arrumei ocupação à
noite, há senhoras mães de família que já me cumprimentam. Às
vezes, aparecem nos rostos sorrisos de confiança. Acham, sem dúvida,
que estou melhorando.
— Bom
rapaz. Bom rapaz.
Como
se isto estivesse me interessando…
Faço
serão, fico até tarde. Números, carimbos, coisas chatas. Dez, onze
horas. De quando em vez levo cerveja preta e levo Huxley. (Li duas
vezes o Contraponto e leio sempre.) Não parei na várzea da
U.M.P.A, nas lições de distribuição de passes e centros que
Biluca me dava.
Deixando
o escritório. A madrugada costuma enegrecer tudo. Casas e homens. Só
as minhas tampinhas reluzem na calçada. Contraponto debaixo de um
braço. Garrafa vazia de cerveja preta no outro. Assobiando, mãos
nos bolsos.
Mamãe
costuma dizer que eu não sou dos mais feios. Bem — veio morar cá
no bairro uma professorinha solteira, muito chata. Rapazes lhe dão
em cima por causa de um dote, ou de coisa parecida. Não sei. A vida
dos outros nunca me interessou. Nem a dela, embora viva me
provocando. Quer casamento, com certeza. Olho para a mulher, para os
modos, para o anel… Quer casamento. Eu não.
Dias
desses, no lotação. A tal estava a meu lado querendo prosa.
Tentava, uma olhadela, nos cantos os olhos se mexendo. Um enorme anel
de grau no dedo. Ostentação boba, é moça como qualquer outra.
Igualzinha às outras, sem diferença. E eu me casar com um troço
daquele?… Parece-me que procurava conversa, por causa dum Huxley
que viu repousando nos meus joelhos. Eu, Huxley e tampinhas somos
coincidências. Que se encontraram e que se dão bem. Perguntou o que
eu fazia na vida. A pergunta veio com jeito, boas palavras, delicada,
talvez não querendo ofender o silêncio em que eu me fechava. Quase
respondi…
— Olhe:
sou um cara que trabalha muito mal. Assobia sambas de Noel com alguma
bossa. Agora, minha especialidade, meu gosto, meu jeito mesmo, é
chutar tampinhas da rua. Não conheço chutador mais fino.
Mas
não sei. A voz mulata no disco me fala de coisas sutis e
corriqueiras. De vez em quando um amor que morre sem recado, sem
bilhete. Ciúme, queixa. Sutis e corriqueiras. Ou a cadência dos
versos que exaltam um céu cinzento, uma luva, um carro de praça…
Se ouço um samba de Noel… Muito difícil dizer, por exemplo, o que
é mais bonito — o “feitio de oração” ou as minhas tampinhas.
João
Antônio, in Afinação e a arte de chutar tampinhas
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