sexta-feira, 31 de março de 2017

Um ex-pregador


De repente, Tom exclamou:
Ei, onde está o reverendo? Ele tava aqui agorinha mesmo. Aonde que ele foi?
Eu vi ele — disse o pai. — Mas agora não sei onde está.
E a avó falou em voz aguda:
Reverendo? Ocê trouxe um pregador? Traz ele pra cá. Ele pode dizer uma reza. — E ela apontou para o marido. — Pra ele não adianta mais, já comeu. Traz pra cá o reverendo.
Tom foi à porta.
Ei, Jim! — gritou. — Jim Casy! — E saiu pelo terreiro, clamando: — Ô Casy!
O pregador emergiu de trás da cisterna, endireitou-se e foi andando em direção à casa.
Que é que o senhor tava fazendo aí? — perguntou-lhe Tom.
Bem, não estava fazendo nada. Mas um homem não deve meter o nariz numa reunião íntima de família. Eu estava só sentado e pensando.
Vamo entrar e comer — convidou-o Tom. — A minha avó quer uma reza.
Mas eu não sou mais um pregador — protestou Casy.
Ora, deixe disso. Que é que custa rezar uma prece? Pro senhor não tem importância e pra ela faz bem. — Os dois entraram na cozinha.
Seja bem-vindo — cumprimentou-o a mãe.
E o pai disse:
O senhor é bem-vindo. Vamo comer qualquer coisa.
Primeiro vamo rezar — clamou a avó. — Primeiro a reza.
O avô focalizou com ferocidade o pastor com os olhos, até reconhecê-lo.
Oh, eu conheço esse pregador — disse. — Ele é dos bons. Sempre gostei dele... desde que o vi.— E pestanejou tão libidinosamente que sua mulher pensou que ele tivesse dito qualquer coisa e replicou:
Cala a boca, seu bode velho!
Casy passou, nervoso, os dedos pelos cabelos.
É preciso que saibam, eu não sou mais um pregador. Se é só para dizer algumas palavras de gratidão, por me encontrar aqui no meio de gente boa, generosa, está certo... mas... está bem, vou fazer do meu agradecimento uma prece. Mas, repito, não sou mais nenhum pregador.
Então diz — falou a avó. — E diz umas palavras sobre a nossa viagem pra Califórnia.
O pregador baixou a cabeça e todos os outros o imitaram. A mãe cruzou os braços sobre o ventre e baixou a cabeça. A avó baixou-a tanto que quase tocou o prato gorduroso com o nariz. Tom, encostado à parede, o prato na mão, baixou-a bruscamente, e o avô inclinou-a de lado, de maneira que pudesse observar o reverendo com os olhos maliciosos. E nas faces do pregador havia traços não de quem reza, mas de quem está cismando, pensativo; e no tom de sua voz não havia súplica, mas apenas reflexão.
Estive pensando — disse o reverendo. — Eu estava nas colinas, cismando, tal qual Jesus devia ter cismado quando se meteu deserto adentro para encontrar uma solução para as suas aflições.
Com Deus, pela vitória! — disse a avó, e o pregador olhou-a surpreso.
Jesus estava todo enredado por aflições e Ele não via em como sair delas; então Ele ficou cismando em para que diabo, afinal, valeria a pena lutar e pensar. Ficou fatigado, então, e Seu espírito consumiu-se. Foi aí que Ele chegou à conclusão de que não valia a pena se atormentar. E meteu-se no deserto.
A... mém. — A avó falou, numa espécie de balido. Tinha a mania de meter-se sempre nas pausas. Assim vinha fazendo através dos anos, compreendendo ou não o que ouvia.
Não quero dizer que eu seja como Jesus — continuou o pregador. — Mas eu também fiquei fatigado como Ele, e estava aturdido como Ele, e me meti nos ermos como Ele, sem nada para me abrigar. À noite, eu ficava deitado de costas e olhava as estrelas; pelas madrugadas, ficava sentado à espera de que o sol nascesse; pelo meio-dia, contemplava do alto de uma colina a extensão das vastas terras secas; pela tarde, acompanhava com os olhos o pôr do sol. Às vezes rezava, como fazia antigamente. Só não sabia o que rezava e por quê. Ali estavam os outeiros e ali estava eu e não havia separação entre nós. Éramos uma só coisa. E essa coisa unida era uma coisa sagrada.
Aleluia — disse a avó, e balançou a cabeça para a frente e para trás, tentando assumir uma posição de êxtase.
E eu fiquei pensando, só que não era bem pensando, era mais profundo que o simples pensar. Fiquei cismando em como é que nós éramos sagrados quando éramos uma só coisa, e o gênero humano era sagrado quando era uma só coisa. E só deixava de ser sagrado quando um mísero camarada cerrava os dentes e seguia o seu caminho, batendo os pés, aos arrancos, lutando. Camaradas assim perturbam a santidade. Mas quando eles agem em conjunto, não um para o outro, mas um camarada só para toda a comunidade — aí sim, aí está tudo certo, é sagrado. E depois eu fiquei pensando que afinal nem sei o que quero dizer com o termo sagrado. — Ele estacou, mas as cabeças continuaram baixas, porquanto elas estavam treinadas, qual cães, a erguerem-se apenas ao sinal de “amém”. — Eu não sei orar como antigamente. Estou feliz com a santidade desta refeição. Dou graças por encontrar amor neste lugar. É só. — As cabeças continuaram baixas. O pregador olhou em torno. — Fiz com que esfriasse a comida — disse; e depois lembrou-se. — Amém — concluiu, e as cabeças ergueram-se todas.
A... mém — disse a avó, e caiu sobre a comida, mordendo o pão com as gengivas desdentadas.
Tom comia depressa e o pai empanturrou-se. Ninguém falou, até acabar a comida, e todos tomarem café; somente era audível o mastigar da comida e o borbulhar do café a descer pelas gargantas. A mãe observava o pregador a comer, com olhos interrogadores e compreensivos. Ela o observava como se o reverendo se tivesse transformado de repente num espírito, não mais fosse um ser humano, mas uma voz vinda das profundezas.
John Steinbeck, in As vinhas da ira

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